“E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito. ‘– Olha agora!’ Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo… O senhor tinha retirado dele os óculos, e Miguilim ainda apontava, falava, contava tudo como era, como tinha visto. Mãe esteve assim assustada; mas o senhor dizia que Miguilim também carecia de usar óculos, dali por diante.”
A conhecida passagem da novela Campo Geral, de Guimarães Rosa, um dos maiores escritores brasileiros, retrata a experiência do menino de uma pequena cidade do sertão de Minas Gerais ao experimentar pela primeira vez os óculos, que lhe descortinam o mundo, até então percebido sem nitidez. O texto literário tem quase 70 anos e, ainda hoje, estima-se, com base em estudos regionais, que entre 20% e 30% das crianças em idade escolar apresentem algum grau de erro de refração. Faltam dados consolidados, pois não há programas regulares de triagem nas escolas. Quando não são corrigidos cedo, esses problemas se agravam e, em certos casos, evoluem para quadros irreversíveis, como a ambliopia, que, depois dos sete anos de idade, não responde a tratamentos.
No caso das crianças, os problemas visuais podem limitar sua interação com o ambiente, dificultando o aprendizado e a comunicação, o que afeta não só o desenvolvimento cognitivo como a autoestima. Uma deficiência visual pode ocasionar desinteresse pelas aulas, distração ou agitação e, eventualmente, levar a um diagnóstico equivocado de TDAH (transtorno do déficit de atenção e hiperatividade). Daí a importância da triagem regular nas escolas. Esse é um dos aspectos que merecem atenção no que diz respeito à saúde ocular.
Um relatório divulgado recentemente pela Agência Internacional para a Prevenção da Cegueira (IAPB), realizado em parceria com a Fundação Seva e a Fundação Fred Hollows, mostrou que o Brasil poderia obter um retorno anual de R$ 42 bilhões ao investir apenas R$ 1,55 bilhão (menos de 1% do orçamento da saúde) na prevenção e no tratamento de problemas de visão. O impacto econômico estimado é 27 vezes superior ao valor aplicado.
O cálculo considera não só redução de gastos diretos em saúde como ganhos em empregabilidade (R$ 16,8 bilhões), em aumento de produtividade (R$ 9,36 bilhões), em prevenção da depressão (cerca de 60 mil casos por ano), em redução de acidentes de trânsito (quase 14 mil) e em acréscimo de muitos anos de escolaridade para crianças e jovens. Problemas de visão afetam um sem-número de atividades sociais e, com baixo investimento, podem ser significativamente reduzidos.
O relatório da IAPB sugere políticas públicas simples e eficazes, como exames preventivos em escolas e comunidades, distribuição de óculos e aperfeiçoamento das cirurgias oculares, em particular a da catarata. Com uso de técnicas minimamente invasivas, como a facoemulsificação, a cirurgia de catarata exige menos tempo, podendo ser realizada em mutirões, e permite recuperação mais rápida, acarretando menos complicações.
Mesmo reconhecendo o potencial dos mutirões de cirurgia de catarata, não podemos esquecer casos recentes no Brasil que nos acenderam um sinal de alerta. Em 2024, diversos pacientes sofreram infecções graves após procedimentos realizados em ações emergenciais, tendo alguns perdido a visão, inclusive de olhos saudáveis. Esses episódios nos ensinam que ampliar o acesso não pode significar abrir mão da segurança. A solução jamais pode ser pior que o problema.
É por isso que são necessários rígidos protocolos de esterilização, sólida capacitação das equipes envolvidas, monitoramento pós-operatório obrigatório e, é claro, auditorias independentes e transparência nos resultados. A expansão dos serviços oftalmológicos precisa ser acompanhada de responsabilidade técnica e de controle sanitário. Infelizmente, casos como os que foram noticiados no ano passado geram temor na população e podem criar hesitação ante o tratamento cirúrgico. É necessário oferecer à população serviços seguros e de qualidade. Como bem mostrou o relatório da IAPB, isso não custa muito, sobretudo em face dos benefícios que pode gerar.
Restaurar a visão certamente aumenta a produtividade, mas é claro que isso não significa que a deficiência visual incurável seja um atestado de improdutividade. Muito pelo contrário. Graças a tecnologias assistivas e a práticas de inclusão no mercado de trabalho, temos podido contar com a capacidade criativa de pessoas que, durante muito tempo, por preconceito, foram marginalizadas da sociedade. O direito à inclusão e o reconhecimento do potencial dos deficientes visuais são inegociáveis. Defendemos, porém, acesso rápido e seguro a todos os tratamentos que possam restaurar a visão.
Com a inclusão dos deficientes e com investimento em prevenção e solução de problemas antes que se tornem irreversíveis, o país pode gerar ganhos bilionários, reduzir desigualdades e garantir a milhões de pessoas qualidade de vida. Como o personagem de Guimarães Rosa, milhares de crianças só precisam de óculos para enxergar um futuro melhor.