“O que você faz com um investimento de R$ 420 por mês?”, questiona a pesquisadora sênior do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Enid Rocha Andrade da Silva, em entrevista à coluna. “Um plano de saúde infantil privado custa, em média, R$ 400/mês, o gasto médio anual de material escolar em 2025 no ensino fundamental é de R$ 400 a R$ 800”, compara. “Esse valor não cobre com qualidade as outras despesas necessárias para o desenvolvimento integral infantil. Isso mostra que o montante ainda é limitado diante das múltiplas dimensões que o cuidado e a proteção da infância exigem”, diz ela.
Crianças e adolescentes são hoje praticamente um quarto da população brasileira (48,7 milhões, 24% da população). Entre 2019 e 2024, os repasses federais destinados a meninos e meninas de 0 a 17 anos passaram de 3,36% para 4,91%, segundo o relatório Gasto Social com Crianças e Adolescentes no Orçamento Federal 2019-2024, lançado agora em julho pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Embora tenha havido um aumento nos valores investidos ao longo do período analisado, os percentuais permaneceram abaixo dos 2,5% do PIB nacional.
CRIANÇAS E ADOLESCENTES AINDA ESTÃO LONGE DE SEREM PRIORIDADE NO ORÇAMENTO PÚBLICO
No Brasil, o Artigo 227 da Constituição Federal assegura prioridade absoluta às crianças e adolescentes, o que implica atenção preferencial nas políticas públicas e nos investimentos estatais. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reforça esse princípio ao determinar a destinação privilegiada de recursos para esse público. Infelizmente, na prática, a infância e a adolescência ainda estão muito longe de serem prioridade absoluta no orçamento público.
Para se ter uma ideia da grandeza – ou melhor, de quão reduzida é a participação de crianças e adolescentes no orçamento – até julho foram gastos com o pagamento da dívida pública R$ 1,4 trilhão, o que representou cerca de metade do orçamento, de acordo com dados do Painel Siga Brasil.
Graças à metodologia desenvolvida pelo Ipea e pelo Unicef, desde 2018, é possível saber quanto se gasta de fato com esse público. As ações são classificadas em específicas, voltadas exclusivamente para crianças e adolescentes, e ampliadas, que beneficiam também outros segmentos da população, como programas de transferência de renda, saneamento e habitação.
Para as ações classificadas como ampliadas, os valores são ajustados com base em indicadores (ponderadores) que permitem estimar o montante efetivamente destinado a esse público.
Ao longo do período analisado, os gastos específicos representaram de 15% a 30% do chamado gasto social com crianças e adolescentes. “No Brasil, de forma geral, não temos uma política pública desenhada para a criança e para o adolescente”, lamenta a pesquisadora, uma das responsáveis pelo estudo. “As políticas são para todo mundo e não veem a perspectiva da infância e da adolescência. Não são desenhadas para isso. Crianças e adolescentes nunca estiveram no centro da política e consequentemente dos recursos”, diz.
Uma das recomendações do relatório é justamente que os ministérios setoriais passem a identificar, no momento do planejamento orçamentário, quais faixas etárias são diretamente beneficiadas por cada ação. “Essa informação tornaria o sistema mais transparente, ágil e útil para a gestão intersetorial de políticas públicas”, diz a publicação.
Mais do que algumas linhas a mais no orçamento, essa informação pode promover um salto importante nas políticas públicas para a infância e para a adolescência. Para Enid Rocha Andrade da Silva, saber o número de crianças na primeira infância (0 a 6 anos) beneficiadas no Programa Minha Casa, Minha Vida pode significar, por exemplo, a inclusão de mais espaços para os pequenos brincarem e a possibilidade de os gestores olharem para a política pensando em qual é a melhor forma de incluí-los e quanto isso deve custar. “É importante que os gestores coloquem essa perspectiva dentro do desenho da política pública”, afirma.
A área de alívio à pobreza e assistência social concentrou a maior parte dos recursos investidos em crianças e adolescentes ao longo do período analisado (2019-2024), R$ 159 bilhões, em decorrência da expansão significativa do Programa Bolsa Família. Em 2022, a Educação ultrapassou a Saúde, como a segunda área de maior gasto, impulsionada por um aumento de R$ 14 bilhões, enquanto o investimento em Saúde teve uma redução de R$ 10 bilhões no mesmo período.
De acordo com o relatório, esse cenário decorre de mudanças recentes no regime fiscal, que alteraram a fórmula de cálculo do piso federal para a Saúde, substituindo o percentual sobre a receita corrente líquida por uma correção baseada na inflação. A redução da participação da União no financiamento da Saúde pode representar um desafio adicional a estados e municípios na manutenção e expansão de serviços essenciais à população, impactando ainda mais crianças e adolescentes.
POUCOS RECURSOS PARA HABITAÇÃO, PROTEÇÃO E SANEAMENTO
Áreas como como Habitação, Proteção dos Direitos de Crianças e Adolescentes e Saneamento tiveram menor participação orçamentária, R$ 3,6 bilhões, R$ 500 milhões e R$ 400 milhões, respectivamente, em 2023.
Dividido o volume de recursos dessas áreas pelo número de crianças e adolescentes, o montante é irrisório: R$ 74 por criança/adolescente para habitação, R$ 10,20 para proteção e R$ 8,20 para saneamento (o equivalente a um cafezinho).
Resultado: políticas importantes para esse público, como a de famílias acolhedoras e de proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte, contam, segundo a pesquisadora, com recursos ínfimos – e cada vez menores –, comprometendo a sua execução.
Eventuais restrições orçamentárias podem impactar ainda mais nossas crianças e adolescentes. “O ajuste fiscal não deve atingir essas áreas para não comprometer direitos que são fundamentais, como saúde, educação, proteção e assistência”, defende a pesquisadora.
Segundo ela, outra demanda urgente é dar transparência às emendas parlamentares. “As emendas disputam o espaço dos recursos do orçamento para programas mais estruturantes. Precisamos ter clareza dos critérios que são utilizados”, diz Enid Rocha Andrade da Silva.
Em 2023, 28,8 milhões de crianças (55,9%), viviam em pobreza multidimensional, ou seja, enfrentavam privações não apenas de renda, mas também de acesso a direitos essenciais, como água, saneamento adequado, habitação e informação, segundo o Unicef.
Com tantos desafios pela frente, o Brasil precisa de fato priorizar suas crianças e adolescentes na prática. Um bom começo é olhar o que se gasta – ou melhor, se investe – em cada programa com nossos meninos e meninas. Sem orçamento não temos políticas públicas. Nem prioridade absoluta para a infância e a adolescência.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos. Siga a colunista no Instagram.