Durante mais de uma década, entre gravadores e silêncios, entrevistei Luís Roberto Barroso em diferentes momentos da vida nacional. Professor, jurista, ministro, presidente do Supremo. Cada encontro revelava um país, um tempo e um homem. O Brasil mudava, o poder mudava, e o espelho do Supremo refletia ambos com a mesma inquietação.
Nos primeiros anos, Barroso ainda era o intelectual que transitava entre a universidade e o debate público. Em 2010, numa entrevista para a Folha de S.Paulo, ele falava com brilho acadêmico sobre direitos individuais. Defendia, por exemplo, o direito das Testemunhas de Jeová de recusar transfusões de sangue por convicção religiosa — e, mais que isso, defendia o princípio da autonomia. “A dignidade humana: é o direito de cada um fazer as próprias escolhas, ainda que o Estado discorde delas”. A frase ficou comigo. Naquele tempo, parecia apenas um argumento de sala de aula. Hoje soa como uma espécie de credo, em tempos de gritos e intolerância.
Três anos depois, encontrei um Barroso diferente. A toga recém-vestida trazia o peso da República. Dilma Rousseff o indicara para o Supremo, e o país, ainda em luto moral pelo Mensalão, começava a flertar com o desencanto. Na entrevista que fiz em 2016, já como ministro, ele falou sobre o impeachment de Dilma com cautela e lucidez. “O impeachment é um momento de abalo político”. Defendia o semipresidencialismo como alternativa para evitar crises cíclicas. Era uma fala de prudência, mas o idealismo do professor começava a se confrontar com o pragmatismo da toga. O país entrava em convulsão.
Com o passar dos anos, essa distância entre teoria e prática foi se revelando. No documentário Em Nome dos Pais, da HBO, gravado comigo em 2017, Barroso defendeu a Lei de Anistia de 1979 — uma posição que considerei equivocada. Ao falar em “pacificação nacional”, ele ignorava o que qualquer repórter de direitos humanos já sabia: que não há paz possível sobre o silêncio das vítimas. Era o ponto de inflexão entre nós.
Mesmo assim, continuamos conversando. Em 2020, no estúdio do Amarelas On Air, na Veja, o tom era outro. O país mergulhava na retórica da grosseria bolsonarista, e o ministro, sem citar nomes, lamentava o que via como o rebaixamento da vida pública. “A falta de compostura de um chefe de Estado faz mal para todo o país”, afirmou. Era uma crítica direta, mas também um desabafo — o Barroso de então falava como cidadão, não como juiz após uma provocação. Naquele momento, a serenidade habitual parecia dar lugar à exaustão de quem via o discurso de ódio se transformar em método de governo. A entrevista terminou com um silêncio breve e incômodo.
Quando assumiu a presidência do STF, em 2023, o país já havia ultrapassado todos os limites da tensão institucional. O 8 de janeiro havia exposto o que muitos temiam: a fragilidade das instituições e a força destrutiva da mentira, terreno ardiloso quando não fazemos o dever de casa. Pela falta de justiça de transição após a ditadura, Barroso herdou um tribunal ferido, e precisou conduzir, como cirurgião e bombeiro, o processo de responsabilização dos envolvidos nos ataques. Vi nele o dever de reagir. Sob sua liderança, o Supremo voltou a ser visto — por uns como herói, por outros como vilão —, mas, acima de tudo, como a resistência democrática.
Quando o tribunal condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro pela tentativa de golpe, Barroso disse que o STF havia “cumprido uma missão histórica”. Eu entendi o que ele quis dizer: era o fim simbólico de uma era de ameaças e bravatas.
Ao longo desses anos, vi Barroso mudar — e vi o Brasil mudar com ele. De professor liberal a ministro de crise, de teórico da Constituição a símbolo de resistência. É verdade que cometeu excessos e deslizes, e que suas frases, por vezes, soaram mais provocação do que prudência – vide a briga pública com Gilmar Mendes hoje superada. Mas é inegável que, sem a firmeza de figuras como ele, talvez o país tivesse sucumbido ao autoritarismo disfarçado de patriotismo.
Barroso sempre acreditou na força transformadora do Direito, mas, ao longo dos anos, viu o reflexo do que nos tornamos como democracia: imperfeita, conflituosa, mas ainda em pé.