O escritor japonês Durian Sukegawa acaba de lançar no Brasil o romance Doce Tóquio, pela editora Morro Branco. Sucesso de vendas no Japão e adaptado para o cinema em 2015, o livro apresenta uma narrativa delicada sobre amizade e solidão nas ruas da capital japonesa. A trama acompanha o encontro entre um vendedor de dorayakis (tradicionais doces recheados com pasta de feijão-azuki) e uma idosa marcada por um passado doloroso. Unidos pela arte de preparar doces, eles descobrem no convívio o poder transformador e curativo das conexões humanas.
Em entrevista exclusiva à coluna Giro pelo Oriente, da Revista Veja, Sukegawa fala sobre o processo de criação da obra e a mensagem que deseja transmitir aos leitores.
O que a receita de dorayaki nos ensina sobre amizade, empatia e o sentido da vida? Uma receita só ganha vida quando existe o desejo de que quem saboreia o dorayaki, desfrute de sua doçura, sinta a alegria do momento e aprecie o seu aroma irresistível. Esse sentimento também desperta uma atitude de valorização do encontro com os próprios ingredientes (o feijão azuki, a farinha, os ovos). Isso não é exclusivo do dorayaki; em qualquer prato, uma receita carrega esse cuidado, trazendo consigo o coração de quem a prepara. O mesmo vale para as relações de amizade e para a própria vida. Nada merece ser tratado com descuido. As oportunidades de criar a melhor receita estão escondidas em todos os lugares.
Por que um ingrediente tão simples como o feijão azuki pode carregar tanta história e emoção? Para quem vê o feijão azuki apenas como um ingrediente, a pasta anko ou o dorayaki preparado com ele provavelmente não passam de comida. Mas quando deixamos de enxergá-lo apenas como um insumo e o reconhecemos como uma vida que surgiu para sustentar a nossa, o significado do alimento se transforma. Dentro dele reside uma longa história. O Japão já teve uma classe dominante de samurais; no entanto, mais de 90% da população era formada por camponeses, comerciantes e pessoas marginalizadas, que estavam sob esse domínio. Para essas pessoas (os ancestrais da maioria dos japoneses), os doces, raramente degustados, tornaram-se uma fonte de encorajamento na vida, como um arco-íris que surge depois da chuva. O coração de Tokue, que “fala” com os feijões azuki, é moldado justamente por essa perspectiva, possível apenas em razão de sua posição de vulnerabilidade.
Como a delicadeza de uma senhora idosa muda a rotina de um homem desiludido e de uma jovem solitária? Não existe um mundo único e objetivamente compartilhado. Cada um de nós, a partir da própria subjetividade, atribui significado às coisas e vive os seus dias. A protagonista, Tokue, isolada por ser paciente de hanseníase e vítima da discriminação social, ainda assim possui uma visão que transcende os limites do sanatório. Por meio de seu método singular de “dialogar” com o mundo, ela conquista uma forma própria de liberdade. Tanto Sentaro, que sofreu um revés no meio da vida, quanto Wakana, que encontrava dificuldades para sonhar devido à pobreza, descobriram em seus encontros com Tokue, uma nova maneira de enxergar as coisas, uma nova forma de se relacionar com a rotina. Afinal, a forma como vemos e percebemos transforma completamente o mundo ao nosso redor.
Até que ponto o preconceito pode alterar o rumo de uma vida, e até mesmo o destino de uma cidade inteira? O ser humano não pode viver sozinho. Evoluímos em comunidade e foi assim que garantimos a sobrevivência desde os tempos mais antigos. A sociedade moderna é uma forma avançada dessa organização, mas, dentro desses grupos dos quais dependemos para viver, ser afastado por preconceito e discriminação equivale a ser lançado sozinho em uma selva repleta de lobos e tigres. Uma alma isolada precisa então encontrar uma nova maneira de existir. Essa é uma realidade extremamente dura. E, no entanto, aqueles que criam a discriminação permanecem alheios, sempre em busca de lucro e segurança. Não percebem que a solidão e a dor vão abrindo incontáveis fissuras nas bases da própria sociedade.
Quais paralelos existem entre a solidão dos personagens de Doce Tóquio e a vida nas grandes cidades? Acredito que a solidão de Tokue, isolada em um sanatório de hanseníase, e a de Sentaro, após sua saída da prisão, sejam fundamentalmente diferentes. Tokue, confinada entre muros pela doença e pela discriminação social, encontrou liberdade ao mudar sua forma de olhar, superando o absurdo. Já Sentaro ergueu os próprios muros, apesar de ter a possibilidade de viver em liberdade. A solidão que pode ser vista como a “doença” das metrópoles talvez nasça justamente das normas exigidas em nome da ordem. Também na sociedade existem muros e tetos invisíveis.
Por que o senhor usou o tema hanseníase? Ao escrever sobre a doença e o isolamento, o senhor quis provocar um debate social? A hanseníase e a questão da discriminação ligada a ela não são os temas centrais deste romance, mas sim o pano de fundo da história. O que eu quis retratar foi uma nova postura diante da vida: a ideia de que mesmo alguém confinado por cercas pode ter um coração vasto o bastante para ressoar com o mundo, ao acolher ativamente cada fenômeno sutil do seu entorno. Chamo isso de “sensibilidade ativa”. Ao ler poesias e ensaios escritos por pacientes em sanatórios de hanseníase, essa atitude fica ainda mais clara. Meu objetivo não era levantar um debate sobre a doença em si, mas questionar a mentalidade social que considera a vida sem sentido caso não se realize alguma grande obra. Acredito que simplesmente viver, sentir e perseverar (em qualquer circunstância) já gera um sentido positivo em si mesmo.
Qual é a doce mensagem final que o leitor leva consigo ao fechar o livro? Eu não tinha talentos especiais e me sentia perdido na vida. Nunca elogiado pelos meus pais, cheguei a me perguntar se merecia existir. Às vezes, recebo mensagens de leitores que também viveram com esses sentimentos dolorosos: “Meu mundo se abriu” ou “Encontrei coragem para começar uma nova vida”. O que permeia a sociedade humana moderna é a “competição” e a “comparação”, e o consequente senso de “superioridade e inferioridade” atormenta muitas pessoas. De fato, a sociedade foi criada pelos seres humanos para garantir a sobrevivência. Mas aquilo que criou a própria humanidade é uma força grandiosa, além da nossa compreensão. Minha esperança, expressa nesta história, é que os leitores tenham consciência disso e encontrem uma forma de viver que seja possível e verdadeira para eles.
O senhor começou sua trajetória como poeta e performer. Como essa vivência influenciou o ritmo e a sensibilidade de Doce Tóquio? Nunca pensei se minha carreira influenciou esta história. No entanto, as letras que escrevi para minha banda sempre deram voz aos “oprimidos” ou àqueles “esquecidos pela sociedade”. Nesse sentido, talvez haja uma certa consistência na minha perspectiva.
Doce Tóquio foi inspirada em uma pessoa real ou é totalmente fruto da sua imaginação? Conheci vários pacientes em um sanatório de hanseníase e também tive contato com muitas obras literárias criadas dentro desses locais. Essas experiências se fundiram para formar o coração de Tokue. No entanto, os aspectos de ela querer se tornar professora no futuro e preparar doces para encorajar todos são baseados em uma mulher do sanatório de Kagoshima, com quem me encontrei diversas vezes. Vale destacar que os doces que ela fazia não eram an (pasta de feijão vermelho), mas sata andagi, uma especialidade de Okinawa, no Japão. Esse doce, feito de batata-doce roxa, é muito rico e delicioso.
Se pudesse acrescentar um novo capítulo à história, onde estariam Sentarô e Wakana hoje? Sentaro, que queria se tornar romancista, provavelmente estaria administrando uma pequena loja de dorayaki enquanto escrevia suas histórias à noite, em sua mesa. Não seriam entretenimento para as massas, mas sim contos secretos, destinados apenas àqueles que os buscam. Wakana provavelmente visitaria o ateliê de Sentaro de vez em quando, para compartilhar com ele a “novidade do mundo” que descobrira naquele dia.
