Brasília, 02 de setembro de 2025.
Hoje começou, às 9h da manhã, o julgamento do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro. Moro há 20 anos no Condominio Solar de Brasilia no Jardim Botânico, o mesmo do réu e ex-presidente. Ironia do destino ou não, não importa, moro na casa vizinha do vizinho de trás do Messias; o que há cinco dias faz da minha casa alvo de vigilância 24h pela polícia. Minhas idas e vindas estão sendo monitoradas, o que a princípio, não é um problema, já que não devo nada a ninguém e não vou ajudá-lo a fugir.
Descubro na sexta-feira dia 29/09, o que eu já suspeitava. Saiu na coluna da Mônica Bergamo. A mãe de um coleguinha da escola do meu filho me manda um print do título da matéria da colunista da Folha: “PF teme que Bolsonaro pule muro de vizinho para fugir de condomínio. Imagens aéreas mostrariam que ele poderia acessar casas dos fundos com facilidade”. No caso, uma dessas casas é a minha. E o meu telefone começa a disparar: mensagens de amigos, da família, todos que sabem da situação. A polícia agora suspeita que Bolsonaro pule no meu jardim para uma tentativa de fuga; já eu duvido muito que ele se prestaria a fazer esse le parkour radical na sua idade, mas, no desespero, e o dele não é pouco, tudo é possível. Minha mente, então, super criativa, começa a trabalhar: eu devo estar sendo grampeada! E quando olho para o meu portão percebo que o carro preto que havia dormido na minha porta de quinta para sexta era a polícia. Portanto, naquele exato momento policiais poderiam estar me olhando. Até aí tudo bem, é o trabalho deles. Mas só de pensar que posso estar sendo grampeada, que as besteiras monumentais que falo durante o dia podem estar sendo ouvidas, me dá arrepios.
Minha intimidade agora está em xeque. Mate? O que a gente conversa com os outros, o cotidiano com o meu filho e, minha vida amorosa, principalmente, deveriam residir no território do sagrado. Andar de biquini pelo quintal e molhar minhas plantas descabelada, chamar um uber e depois ouvir o motorista relatando que se sentiu acuado com tantos homens (no caso quatro) olhando para dentro do seu carro, e eu, tendo que explicar o porquê; ter fototojornalista querendo entrar no condomínio usando o meu endereço (até quero ajudar, mas nessas horas penso que o condomínio pode me multar e desisto). Já pedi para os meus amigos policiais mudarem a posição do carro porque está atrapalhado minhas saídas, explico para eles que, às vezes, quando estou com muita pressa posso, manobrando, bater no carro deles; ah, já perguntei também até quando eles ficam, ao que me responderam: “não sabemos”. Essa é a minha rotina agora, entrar e sair de casa dando tchauzinho para homens que ficam com os vidros fechados dentro de carros pretos no calor escaldante. Confesso que tenho pena, porque não tem nenhuma árvore com sombra; às vezes tenho raiva.
Sou fotógrafa autônoma e essa semana estou em casa em tempo integral, editando as intermináveis fotos produzidas em poucos dias de trabalho, o que indica que estou mais ansiosa que o normal, e não é para menos.
Domingo passado, saindo da academia, fui agredida verbalmente por militantes que estavam fazendo manifestação na porta do condomínio. Parei para comprar um frango assado da Ju, morta de fome depois de um treino. A Ju ficou “famosa” porque o ex-presidente antes da prisão domiciliar amava comprar o seu frango assado, e ele é bom mesmo. E lá estava eu, esperando meu pedido na fila, atrás de quatro cidadãos manifestantes. Estava quieta, meio aturdida com o sol e com o barulho de cornetas, gritos, uns esperneios histéricos sem nenhuma lógica, até porque razão nunca foi o forte desse pessoal. Mas como minha vez não chegava, tive a péssima ideia de prestar atenção no que aquelas pessoas falavam. Não sei se foi o sol ou a pressão da situação mas eu via suas bocas se mexendo em câmera lenta numa mescla fantástica (de fantasia mesmo e não de maravilhoso), de exaltação combinada com teorias conspiratórias, totalmente fora da casinha. Ouvi um deles falando para a Ju que o frango dela poderia ser envenenado com o intuito de matar Bolsonaro. A coitada estava trabalhando num calor horrível com a barriga na chapa, e ainda tinha que explicar que no frango dela ninguém metia a mão, logo, Bolsonaro não corria riscos.
Enfim, eu deveria, mas não consegui, ficar calada. Discutir na rua com esses lunáticos (de lua mesmo) não estava nos meus planos de domingo à tarde. Acabei tendo taquicardia por dois dias. Estava de folga e só queria chegar em casa para assistir DNA do Crime (série maravilhosa da netflix, por sinal, recomendo). Talvez minha preocupação se origine daí. Ficar assistindo série policial em vez de um documentário dá nisso, seu imaginário migra de uma hora para outra de: vida ordinária para perseguições policiais, escutas telefônicas e mini câmeras em vasos de planta para realizar, o quê? GRAMPO! Tá vendo aí?
Enfim, voltemos ao frango. Foi um choque ouvir tanta baboseira, tanto ódio e o pior: pensar que eles realmente acreditam nesse universo de fake news messiânica, bem como num suposto perigo “comunista”. Fui chamada de comunista (fiquei na dúvida, e toda a história geopolítica que conheço passou como um flash, para eu me decidir se isso era uma elogio ou não, aos 16 frequentava o movimento estudantil, era a minha balada da época), depois gritaram também “vade retro satanás” (descobri que o termo vem do latim). Tudo porque falei que achava um absurdo gente que, em pleno 2025, apoia: ditadura militar (logo tortura e assassinato), misoginia (que eles nem sabem o que é), machismo, homofobia, armas de fogo dentro de casa, whatever. O 8 de janeiro foi a gota d’água, quando perguntei como eles iam explicar aquele surto e depredação do patrimônio público, falaram que os petistas já tinham quebrado tudo quando eles chegaram lá. Eu não consegui esconder minha cara de susto e falei para eles: “em que mundo paralelo vocês vivem?”, realmente gostaria de saber. Fanatismo religioso justifica delírios como esses? Vou perguntar para Michel Alcoforado, sou fã desse antropólogo chique, e ele estará em Brasília semana que vem, ele vai saber me responder.
Que burrice a minha também achar que poderia haver diálogo, mas o que é isso mesmo? Já não sabemos. Daqui a pouco essa palavra entra em extinção, sai dos dicionários e nunca mais saberemos o que foi, um dia, dialogar com alguém. Um homem de quase dois metros de altura_ quando falei do sistema de cotas, argumentando que pobre pela primeira vez na história desse país tinha ido para a universidade_ ele abre a mão, põe ela na frente da minha cara, mostra os seus calos, e diz que sempre trabalhou e que não precisava de cota nenhuma. Quando falei que trabalhava com arte e cinema, aí que eles mostraram os dentes, riram bem alto, com os caninos apontados para mim e para os frangos, e o despropósito continuou.
E eu não podia, nem queria, ir embora sem o meu almoço, e ele estava demorando mais do que eu gostaria. Foi quando começaram a falar de Deus, e aí eu não me segurei mais. Errei feio, porque Jesus jamais ficaria feliz com esse meu bate-boca dominical, mas graças a Deus Ele morreu na cruz pelos meus pecados, porque olha, pequei. Sou cristã e só de pensar e ouvir aquelas pessoas defendendo um cidadão como Jair Bolsonaro, que fez as barbaridades que fez contra a saúde, a arte, a cultura, e, inclusive, a espiritualidade do povo brasileiro, colocando ainda o nome de Deus no rolê, aí foi demais. Me vi num bug da matrix difícil de compreender. Nessa hora pensei que eles poderiam me agredir fisicamente e o frango saiu e eu saí fora.
Esse sujeito pode ser tudo nesse mundo menos cristão. Acho que Bíblia ele nunca leu ou se leu não entendeu muita coisa, leitura crítica e interpretação de texto também não devem ser o seu forte. O que fica muito óbvio, e nesses momentos ainda mais escancarado, é o cinismo com que Jair Bolsonaro vem usando, de uma forma perversa, uma massa de cristãos há anos, e sendo usado também. Para mim, o que fica disso tudo é que o bolsonarismo é, de verdade, um fenômeno a ser estudado mais a fundo. Acho que só quando compreendermos a extensão, as inúmeras camadas, do que para mim é um surto coletivo, poderemos avançar para não cometermos os mesmos erros. E vamos combinar, isso serve, principalmente, para a esquerda que não dialoga com uma parcela grande da população que se viu, estranhamente, identificada e representada por um factoide de quinta categoria. Silas Malafaia entende disso melhor do que eu. Onde erramos tanto? Digo nós, como sociedade.
Já me recuperei do bate-boca, a paranóia do grampo é o que me consome. É sério, o que eu falo para a minha terapeuta até eu me assusto, e agora não posso mais fazer minhas sessões online, tenho que pegar o meu carrinho e ir até a psicóloga, o que é um gasto a mais. Eu sei que “eles” (os policiais), agora é a paranoia falando tá? Às vezes Ela toma a dianteira e eu só fico na plateia. Eu sei que “eles” não estão nem aí para o que eu falo para a minha terapeuta, nem paras minhas amigas, mas é surreal, pensar que toda essa tensão nacional tem como alvo os poucos metros que me separam da casa do ex-presidente. Eu durmo a menos de 10 metros da sua cama. E que tudo que eu falo pode estar sendo escutado. Na real, sei que privacidade já era. Mas quem pára pra pensar nisso aleatoriamente? Enfim, é quando perdemos as coisas que damos valor a elas. E essa coisa de privacidade é bem legal, e não sabemos disso até perdê-la, mesmo que parcialmente. E a minha casa era, até poucos dias atrás, minha bolha, meu porto seguro, meu parquinho de privacidade.
Será que pergunto para o Moraes se ele pode, por acaso, se tiver mandado me grampear, parar? É que não estou dormindo direito. Eu, que só precisava de sossego… Eu, uma cidadã, não sei se de bem, mas que sempre pretende fazer o bem não importa a quem. E a coisa do pensamento fantástico do grampo também não me deixa ficar à vontade na minha própria casa, será o “Apocalipse nos Trópicos” tocando minha campainha?
Dias tumultuados, históricos, de verdades fragmentadas e de interpretações bíblicas bastante temerárias, em que imagino aquele ser esquisito que fala com baba branca no canto da boca pulando o meu muro e passando pela minha porta, e me pergunto: o que eu faria se o visse? Não saberia dizer. Será que eu iria tentar agarrá-lo para evitar uma fuga? Ou jogaria um livro na cara dele? (isso seria poético). Eu também poderia comprar um spray de pimenta. Ou eu iria gritar para a polícia, hipótese mais plausível, já que ela vive na minha porta agora.
Enfim, oro a Deus para que ele fique bem quietinho, esperando seu veredicto. Que a justiça de Deus e a dos homens não falhem. A de Deus nunca falha, eu acredito nisso com todo o meu coração, mas a do homem é frágil, assustadoramente corrupta e mambembe. Espero que, dessa vez, ela não deixe passar esse bonde que nos atropelou. E por favor, sem prisão domiciliar no condomínio E os bolsonaristas, homens e mulheres “de bem”, convictos desse cristianismo de fachada, esses sim, são os que me preocupam. Bolsonaro caiu, provavelmente vai para a Papuda, e eles? Para onde vão?…
* Érica Pessoa (pseudônimo) conhece este colunista há mais de uma década e teve a coragem de contar como é conviver com quem acha que a terra é plana. Ou finge achar…