Autoridades atingidas pela suspensão do visto americano podem muito bem viver sem ele e não se abalar por eventuais sanções bancárias. Diplomatas que alimentam a crise, em lugar de acalmar os ânimos, são funcionários públicos privilegiados, não dependem do dia a dia da economia. Todas as forças identificadas com o governo estão comemorando a reação de apoio da maioria da opinião pública. Donald Trump não gostou de ser desafiado, vendo a situação de Jair Bolsonaro se agravar depois de sua intervenção, o que faz prever um acirramento. Em suma, quem deseja uma solução racional, equilibrada, sem piores prejuízos para o país e sem ruptura com a maior superpotência mundial está mal arranjado. A situação tende a piorar, em vez de desconflituar, como diz o neologismo tirado da linguagem bélica.
Para Trump, os efeitos são mínimos. O café e o suco de laranja ficarão mais caros para os americanos, até que ocorra a substituição dos produtos importados? Não é exatamente uma crise grave. O Brasil ocupa o 15º lugar na lista de parceiros comerciais americanos. E Trump tem até o ano que vem para melhorar as condições econômicas, antes de ser punido com uma potencial perda da maioria na Câmara dos Representantes, um fato recorrente na política americana.
Na média das pesquisas, ele tem 45,8% de aprovação e 51,5% de desaprovação. Não é brilhante, mas fica exatamente empatado com Barack Obama e Joe Biden na mesma altura do mandato. O maior perigo, o de que perdesse apoio da base trumpista por causa da virada em relação ao caso do milionário abusador Jeffrey Epstein, não se concretizou até agora: ele tem 90% de aprovação entre seu eleitorado.
Nesse caso, Trump também demonstrou sua convicção de que a melhor defesa sempre é o ataque: abriu um processo pedindo indenização de nada menos que dez bilhões de dólares do Wall Street Journal, o jornal de Rupert Murdoch, por causa de uma reportagem que diz ter tido acesso a uma carta de feliz aniversário enviada a Epstein em 2003 com um corpo de mulher desenhado, frases insinuantes como “que cada diz seja outro magnífico segredo” e o nome Donald assinado na área dos pelos púbicos.
VENDETA PESSOAL
É motivo suficiente para provocar os contornos de um escândalo – mais um, entre os inúmeros aos quais Trump já sobreviveu. Comparado a algo assim, para a maioria dos americanos soa obscuro o entrevero com o Brasil. O embate mal aparece na mídia e todas as reportagens criticando as atitudes de Trump, com tudo o que têm para ser criticadas, obedecem a uma lógica conhecida: a imprensa é majoritariamente de oposição ao presidente e nem finge mais ter alguma imparcialidade.
Pelo que sabemos até agora, Trump assumiu pessoalmente a defesa de Jair Bolsonaro – de maneira equivocada, associando tarifas a um ato de clemência. Duas fontes ouvidas pelo New York Times confirmaram isso. As sugestões de cancelamento do visto a juízes do Supremo Tribunal, só foram ouvidas uma semana depois.
Nessa esfera, já operaram dois ex-assessores e influenciadores ideológicos de Trump próximos de Eduardo Bolsonaro, Steve Bannon e Jason Miller. Este tem uma vendeta pessoal: ele foi detido para uma “conversa” pela Polícia Federal, por ordem de Alexandre de Moraes, quando veio ao Brasil para uma palestra a bolsonaristas, em setembro de 2021.
Ao estilo Trump, foi tudo sendo improvisado no caminho, embora muitos analistas vejam no pano de fundo o confronto geoestratégico com a China e o papel do Brics nesse realinhamento. Ao estilo brasileiro, as reações nacionais não tiveram a firmeza e a calma de quem está do lado da razão. Ao contrário, o tom foi se tornando crescentemente agressivo, como se fosse do interesse do país aumentar a controvérsia.
REAÇÕES COLÉRICAS
Até com a Otan o chanceler Mauro Vieira se estranhou publicamente, atacando seu secretário-geral, o ex-primeiro-ministro holandês Mark Rutte. Fazendo uma referência à ameaça de Trump de impor tarifas secundárias de 100% aos países que negociam com a Rússia se não houver uma resposta positiva à proposta de um cessar-fogo na Ucrânia, Rutte havia dito em tom algo jocoso: “Por favor, façam um telefonema a Vladimir Putin e digam a ele que precisa levar a sério as conversações pela paz, porque, em caso contrário, vai haver uma rebordosa em grande escala para o Brasil, a Índia e a China”.
Resposta oficial da China: “Diálogo e negociações são o único caminho viável para superar a crise” – referência à Ucrânia. Ou seja, recado passado em tom contido e diplomático. Já o chanceler brasileiro, como se não tivesse problemas suficientes, fez um ataque pessoal a Rutte pela “declaração totalmente descabida, fora de propósito, fora da área de competência dele”, visto que a Otan é uma aliança militar.
Não seria interessante se aproximar dos países europeus, sob ameaça de tarifa de 30%, em vez de bradar palavras coléricas?
Reações coléricas de ambos os lados viraram o fator dominante. Em vez de tomar atitudes com visão estratégica, analisando todos os complexos fatores em jogo e escolhendo quais brigas comprar, e o tom correto a dar a elas, opta-se por queimar pontes. Com pontes queimadas, não há retorno.
PRINCÍPIO CANTINFLAS
Quem não tem nada a perder, incentiva irresponsavelmente o incêndio, num clima de briga de egos – o oposto do que seriam decisões tomadas tendo o interesse nacional como fator dominante. É triste ver como empresas e cidadãos brasileiros sairão chamuscados.
Escrevendo sobre o Chile – também assolado pela deformação ideológica da diplomacia – no site Infobae, o analista Ricardo Israel invocou uma tirada antiga do comediante mexicano Cantinflas, que usou para definir o espírito atual: “Estamos pior, mas estamos melhor, porque antes estávamos bem, mas era mentira. Não como agora, que estamos mal, mas é verdade”.
A reunião de cúpula de dirigentes esquerdistas no Chile reflete isso: Lula da Silva, Pedro Sánchez, primeiro-ministro da Espanha; Gustavo Petro, presidente da Colômbia, e o presidente chileno, Gabriel Boric, estão todos com sanções nos calcanhares e problemas de popularidade.
A exceção é o uruguaio Yamandú Orsi, que ou não teve tempo de fazer besteiras ou comprovará que seu país é uma exceção na lista de males da América Latina e não se enquadra no princípio Cantinflas.
Curiosamente, também está escapando do espírito da piada do comediante uma conterrânea mexicana, a presidente Claudia Sheinbaum. O México é o pais mais dependente do mundo da economia americana e Sheinbaum tem engolido todos os queixumes esquerdistas para não entrar em confronto com Trump, sem ter uma atitude subserviente. Dá para fazer, demonstra ela – e ainda ter mais de 80% de popularidade, um espanto só comparável, entre grandes países (por isso Nayib Bukele não entra nessa lista) ao de Narendra Modi na Índia. As negociações para um acordo comercial bilateral entre Índia e Estados Unidos ainda não deram resultado, mas Modi está no clima paciência de guru, sem bater boca nem bater no peito. Nem, por enquanto, queimar pontes.