Uma cesárea de urgência. Um parto prematuro. Um bebê na UTI neonatal. Angústia, estresse e impotência em semanas de internação. Expressões de afeto em meio ao ambiente frio e asséptico do hospital. Eis a odisseia de uma médica que se transforma em mãe e paciente em condições muito distantes daquela experiência idílica (ou utópica) atribuída ao maternar.
Prepare-se para conhecer mãezinha, assim mesmo, com o “m” inicial minúsculo, pois esse é o título do primeiro romance da médica e escritora Izabella Cristo, recém-publicado pela Editora Dublinense.
O livro, vencedor do Prêmio Caminhos de Literatura, retrata a saga, as dores e as pequenas alegrias de uma cirurgiã, que, numa inversão de papéis, é levada às pressas à mesa de operações para dar à luz uma criança que requer cuidados intensivos – e parir uma mãe assolada por culpas, limitações e protocolos hospitalares.
Numa narrativa que injeta ora acidez, ora acolhimento, a pena que substituiu o bisturi nas mãos da autora vai do jargão técnico-científico à poesia, sem perder o elemento de tensão que acompanha os corredores e leitos de um hospital. Tensão que impregna o leitor, ávido por saber se e como mãe e filho sairão dessa.
Com a obra, a agora escritora e médica (sim, a literatura passou à frente) nascida e criada em Belém e radicada em São Paulo – ela mesma progenitora de um prematuro – projetou-se na cena editorial e foi convidada para estar em mesas de debate da Flip deste ano. Suas páginas tocam nas feridas da maternagem, das relações de um casal, dos problemas e dos dilemas do próprio sistema de saúde.
Com a palavra, Izabella Cristo.
O que veio primeiro: a medicina ou a escrita?
A escrita sempre existiu na minha vida. Eu escrevia poemas com 7 anos de idade. Só que, no meu meio sociológico, aquela casinha dos anos 1980 e 90, a gente crescia para ser engenheiro, médico ou advogado. Era o que dava futuro. Então eu estudei e consegui fazer faculdade de medicina em Belém. Depois vim para São Paulo fazer residência médica. E é aquela coisa: a medicina te isola. Se você quer ser minimamente bem formada, nem precisa ser extraordinária, tem que se dedicar. Então eu entrei na bolha da medicina, ainda que sempre escrevesse, assim meio no limbo. Mantinha diário, escrevia crônicas. Mas, em 2018, pesando 107 kg, tive uma gravidez de alto risco. E, no terceiro trimestre da gestação, tive de parar de trabalhar. Então eu pensei: “Vou ter que parar fisicamente, mas agora eu vou literalmente fazer outra coisa”. Meu lado artista sempre esteve lá escondido. E assim fui procurar um grupo de escrita criativa.
E como foi a experiência?
Fui atrás de um grupo de escrita não violenta, um espaço de acolhimento, o Ninho de Escritores. É algo sensacional que tenho até vontade de reproduzir. Enfim, a gente se encontrava semanalmente num espaço seguro. Foi assim que voltei a escrever de fato. E foi nessa época que veio a pandemia. Cheguei a juntar meus textos engavetados por mais de 20 anos e fazer uma autopublicação e seguir produzindo crônicas com personagens da pandemia. Mas foi um paciente que me ajudou a direcionar essa busca pela escrita.
Sério?
Eu estava atendendo um paciente que veio com um livro do Haruki Murakami. Eu perguntei: “Esse livro é bom?” Ele respondeu: “É bom! Você lê?” Eu falei: “Sim, e escrevo”. Ele se surpreendeu e me disse: “Deixa eu olhar o que você escreveu.” Então eu dei meu livro para ele, e depois ele me contou que tinha gostado muito, mas havia coisas para melhorar. Ele me disse que eu não parecia uma iniciante, só que podia me desenvolver melhor numa pós-graduação em escrita criativa. E me indicou o Vera [o Instituto Vera Cruz], um dos poucos lugares em que você consegue fazer uma formação de escritor no Brasil. Eu fui procurar na internet e, por coincidência, estava aberta a inscrição, bem como um concurso de bolsa. Prestei, passei e ganhei a bolsa. E o mãezinha, meu romance, é fruto do trabalho de conclusão de curso dessa pós.
E foi fácil virar a chave de médica para escritora?
No início foi muito louco, porque eu tinha uma cabeça formada em ciências biológicas, né? Eu tinha inclusive dificuldade de entender que sentar para discutir um livro era uma forma de aprender, um tipo de aula. Minha noção de aula era aquela coisa acadêmica da faculdade de medicina. Enfim, foi no Vera que foi surgindo o projeto do meu romance. Na verdade, no começo eu não tinha intenção de escrever um romance. Depois de sair da maternidade, eu sentia uma necessidade de contar certas histórias e cenas que aconteceram ali. Eu achava que o mundo deveria conhecer aquela experiência. Porque todo mundo acha que a vida nos hospitais é aquela fantasia do Grey’s Anatomy.
E não é assim?
Eu digo que, no hospital, acontecem as melhores e as piores circunstâncias da vida no mesmo metro quadrado. O hospital é uma amostra do paradoxo da vida humana concentrado. Porque o tempo todo estamos lidando com situações de estresse, fragilidade, vulnerabilidade, e de ambos os lados, tanto entre os pacientes como entre os profissionais. E é nessas circunstâncias que a gente vê o melhor e o pior do ser humano. Então eu sempre tive vontade de relatar isso. Relatar, não, eu diria denunciar mesmo. As pessoas gostam de assistir a seriados médicos, o tema exerce uma atração e uma curiosidade. Então eu sentia essa necessidade de contar o que acontecia lá dentro, seja como mãe e paciente, seja como médica.
Seu romance mãezinha pode ser classificado como uma autoficção, essa vertente literária em alta hoje?
Olha, no início do projeto do livro, era uma autoficção, eram as minhas experiências mesmo. E muitas das personagens do livro se inspiram em pessoas reais. A mulher da bota ortopédica, a mãe de gêmeos, a youtuber. Mas, à medida que escrevia, fui me distanciando e criei a personagem Isadora. Eu sei até o momento em que a Isadora virou personagem, sabe? Foi ao elaborar aquela cena em que ela está numa fila e vê a mulher de bota ortopédica ali. Então ela peita o guarda para darem prioridade à moça. Eu, Izabella, jamais teria uma atitude tão intensa como a da personagem. Então eu senti que aquela era a voz da protagonista.
E assim você pôde tomar mais liberdades na construção da história?
Meu professor no curso de escrita falava: “Olha, Izabella, quanto mais você pegar e desenvolver a voz da personagem, mais ela vai ganhar poder”. Eu não queria que a minha protagonista fosse uma médica fria, tipo a do livro A Pediatra [romance de Andrea Del Fuego], alguém que poderia ser hostilizada, nem fosse boazinha e perfeitinha. E aí eu entendi que a força dessa personagem residia justamente em ser alguém em construção, alguém com defeitos e sarcasmo, uma médica que perdeu seu poderio e passou para o outro lado, a da paciente.
O processo de escrita do livro foi, digamos, um parto?
Olha, até por ser meu primeiro romance, o livro envolveu muita reescrita, muitas idas e voltas. Foi um processo de construção e reconstrução. E, sim, foi um percurso muito sofrido. Houve momentos em que cheguei a falar: “Não, para quê eu tô fazendo isso com a minha vida? Para! Vai ser cirurgiã!” Passei por uns dois momentos em que pensei em desistir. Cheguei a falar para o professor de escrita: “Não perca seu tempo comigo, não se preocupe. Não sou do romance”. E esse escritor renomado, um sujeito que já ganhou Jabuti, que podia dizer simplesmente “Próximo!”, ele sentou e conversou comigo. Conversou sobre as exigências do romance, das diferenças para as crônicas e outros textos curtos, conversou sobre as portas que esse trabalho poderia abrir, mesmo que não pague as contas. Por que é isso: o romance pode morrer e renascer várias vezes. Então eu sou grata a ele, por me ajudar a manter a disciplina e a passar pela crise.
E houve desafios com a própria voz narrativa e a linguagem?
Para você ter noção, dois terços do livro eu escrevi em segunda pessoa. Mas o terço inicial estava todo em primeira pessoa. Fui testando as vozes narrativas. E senti que precisava de uma terceira pessoa – no caso, o marido, Leônidas – para ter um contraponto à protagonista, para o leitor perceber que ela não é alguém tão confiável. Então realmente houve esse trabalho. Mas o que eu queria no fundo é que a leitura fluísse. E, para encaixar as histórias e os flashbacks, eu cheguei a montar um roteiro com uma série de quadradinhos até decidir em que capítulo deveria encaixar cada parte. Foi uma montagem mesmo.
Seu livro mistura vocabulário médico com rompantes poéticos. Como uniu “línguas” tão diferentes?
Eu trabalho muito para melhorar meu texto com a edição. É um trabalho sofrido, vírgula por vírgula. É a escolha não só da palavra, mas se, por exemplo, o pronome vai estar no início ou no fim da frase, se o adjetivo vem antes ou depois. Enfim, tem todo esse refinamento, inclusive para o ritmo da narrativa. Porque tem hora que o texto é poético, tem hora que não, a cena nem pede isso. Mas, como eu disse, eu queria caçar o leitor, fazê-lo acompanhar a história e, nesse trabalho com a linguagem – e com os verbetes que coloco no livro -, a gente introduz um léxico diferente, dando aquela sensação de que é possível aprender e se emocionar com a leitura. Mas foram 15 versões do livro até chegar à publicação.
Você também passou por uma gravidez de risco. Até que ponto transpôs sua experiência à protagonista?
Sim, mas minha experiência real não foi nem um pouco parecida com a da personagem. Meu filho nasceu prematuro, mas não teve os problemas nem passou pelos procedimentos que o da Isadora no livro. Meu caso foi light. Mas, claro, essa experiência do maternar e de se transformar de médica em paciente, isso passa para o texto. Inclusive essa cobrança sociológica sobre a mãe. Se tem uma bandeira que eu quis defender no livro, foi essa história de que a mulher precisa sempre dar conta. Eu queria desconstruir essa maternidade ideal. Essa ideia de mães e pais perfeitos. Mas eu diria que, até mesmo por ter tido uma uma experiência mais leve e privilegiada, consegui me distanciar e me sentir motivada para contar uma experiência dura. Então, se existe um espectro entre a ficção, a autoficção e a biografia, eu diria que meu livro fica no meio.
Em diversos momentos, o livro é tenso. A gente fica pensando: será que essa história não vai acabar bem? Foi uma escolha natural?
Eu queria escrever um livro que fluísse, mas também colocasse o leitor na cena, que ele sentisse o drama e aquela comoção emocional. No fundo, são escolhas ficcionais que a gente se coloca: esse personagem vai morrer ou não? Esse tipo de coisa, que é o que faz o leitor ir até o fim. E eu acabo trabalhando esses aspectos, inclusive o sofrimento e o luto, com as outras histórias das mães na UTI com seus bebês prematuros. E, claro, pensei muito em que clima terminaria o livro. Eu queria um final feliz, mas meio amargo. Como a vida é.
Para a mãe e a autora de mãezinha, qual é o maior desafio da maternagem?
Acho que o grande desafio do maternar é encarar essa missão sociológica atribuída à mulher e pela qual ela é cobrada. Eu li muito, inclusive não ficção, para entender melhor isso. E esse modelo de mãe nem se aplica a toda mulher. Vale geralmente para aquela figura de mãe branca, casada em um contexto heteronormativo, que tem que ser capacitada para criar uma criança. Porque, se for uma mulher negra atendida no SUS, empregada doméstica com dois filhos, as escolhas e possibilidades serão outras. Enfim, a sociedade nos cobra individualmente uma postura para criar uma criança e cuidar do mundo. Só que isso depende de fatores sociais. E, de certa forma, eu quis introduzir isso no romance, até pelo passado da protagonista. Foi uma necessidade em que eu só reparei depois de ter escrito. Até por ter vindo do Norte, ter uma formação médica no SUS e ter a experiência de parto em um das melhores maternidades de São Paulo, no sistema privado, eu acabei trabalhando esse aspecto de alguém que é colocado em um mundo diferente do qual ela foi criada.
E até uma médica que vira mãe sofre nesse sentido?
Acho que a maior dificuldade na maternidade é lidar com essa sensação de impotência. Mesmo uma médica, uma pessoa com conhecimento técnico, estrutura e rede de apoio, pode se sentir impotente. E existem pessoas em condições muito menos privilegiadas para o maternar. A gente tem de lidar individualmente com uma questão social muito maior.
E o hospital em si, ele consegue acolher efetivamente essas mães?
O hospital também é reflexo da sociedade. E isso envolve desde a formação médica, que é bastante preocupada com o conhecimento técnico, mas não valoriza tanto a formação humana. Não me refiro aqui a um humanismo barato, mas de criar empatia e senso crítico para usar o conhecimento técnico a serviço dos outros. Duas pessoas podem ter o mesmo diagnóstico, e a conduta ser completamente diferente. Acho que é nisso que se peca também com essa revolução tecnológica. Está tudo muito informatizado, mas o grande poder do ser humano está no seu senso crítico, nessa sensibilidade e capacidade de se colocar no lugar do outro. E, de novo, não adianta atribuir uma culpa individualmente, sendo que o problema é do sistema. Com um pronto-socorro cheio, como é que eu consigo atender cem pessoas ao mesmo tempo. A culpa não é do enfermeiro ou do médico. É do sistema. E, no hospital, as pessoas estão em situação de fragilidade e estresse, é um caldeirão para as coisas explodirem.
Por que optou pelo mãezinha com a inicial minúscula no título do livro?
Porque essas mulheres não têm nome próprio, elas viram mãe de alguém, entendeu? Não são individualizadas. E isso acontece até mesmo em um atendimento médico, dentro de um hospital. As pessoas podem virar gado ou números.
Izabella Cristo é uma médica e escritora ou uma escritora e médica?
A minha escrita estava aqui, muitos anos antes de eu começar a ser reconhecida como escritora. Eu era a médica que escrevia. Hoje, não. Em termos de dedicação, sou escritora e depois médica.
Seu romance foi premiado e você é convidada da Flip. Seu livro nasceu e está crescendo. Onde espera que ele vá parar?
Eu penso que os livros seguem seus próprios caminhos, sabe? Como os filhos. Agora que o livro foi publicado e está com os leitores, ele já não é mais meu. Ele é do mundo. É o mundo que vai nos dizer o que fará com ele, o que vai ser dele.