Apesar da caça à “pílula mágica” contra a demência, ela ainda não chegou. Enquanto isso, os diagnósticos seguem subindo mundo afora — em grande parte porque estamos vivendo mais.
Hoje, mais de 55 milhões de pessoas vivem com demências como o Alzheimer no planeta, número que pode chegar a 150 milhões em 2050. No Brasil, as estimativas mais recentes apontam algo em torno de 2,7 milhões de pessoas com demência (com forte tendência de alta nas próximas décadas).
As poucas medicações aprovadas até agora ajudam modestamente quem está nos estágios iniciais — a rigor, “puxam o freio de mão” da evolução por alguns meses, reduzindo a velocidade de progressão, mas não mudam o rumo da doença.
Embora existam diferentes causas para demência, a maior parte decorre da doença de Alzheimer, seguida por processos vasculares. Tanto o Alzheimer quanto a demência vascular têm sua evolução influenciada por fatores de estilo de vida, o que abre uma janela de possibilidade de prevenção. Nesse cenário, o que fazemos no dia a dia ganha destaque: uma parte importante do risco de demência está ligada a fatores de estilo de vida que podemos modificar.
O primeiro grande teste desse modelo veio em 2015, com o FINGER (Finnish Geriatric Intervention Study to Prevent Cognitive Impairment and Disability), na Finlândia. O FINGER, liderado por Miia Kivipelto, médica geriátrica e neurocientista, é um ensaio clínico randomizado, duplo-cego, com 1.260 participantes de 60–77 anos com “risco aumentado” de demência.
Esse risco foi calculado por um escore cardiovascular e de estilo de vida (CAIDE) que leva em conta idade, sexo, escolaridade, pressão sistólica, índice corporal, colesterol total e atividade física. Além disso, todos os indivíduos tinham desempenho cognitivo só na média ou um pouco abaixo do esperado para a idade (sem demência instalada).
Metade do grupo recebeu, por dois anos, uma ampla combinação de estratégias: orientação nutricional, exercício físico estruturado, treinamento cognitivo, estímulo a atividades sociais e monitoramento intensivo de fatores de risco cardiovasculares. A outra metade foi o controle.
Importante: o controle não ficou sem nada; recebeu aconselhamento regular de saúde e feedback sobre fatores de risco medidos nas visitas (incluindo encontros com a equipe para avaliações e orientação de cuidados habituais) — algo próximo do que já é recomendado na atenção primária, o que naturalmente também tende a produzir melhora.
Resultados? Durante todo o estudo — e, principalmente, após os dois anos da intervenção em várias frentes — tanto o grupo experimental quanto o grupo controle mostraram melhoras cognitivas. A diferença é que o grupo que participou da intervenção estruturada melhorou significativamente mais.
Isso, por si só, já é notável: estamos falando de pessoas idosas, com risco aumentado para demência, em quem seria perfeitamente esperado observar um declínio, não ganhos.
As melhoras mais marcantes apareceram em dois domínios específicos. Primeiro, no funcionamento executivo — a capacidade de planejar, organizar, tomar decisões, alternar entre tarefas e resolver problemas. São essas habilidades que permitem a alguém pagar contas em dia, gerenciar a própria medicação e as finanças, cozinhar, sair sozinho de casa. O segundo domínio foi a velocidade de processamento — a rapidez com que o cérebro capta e responde às informações do ambiente.
No dia a dia, isso significa, por exemplo, reagir com agilidade ao atravessar a rua e perceber um carro vindo, ou conseguir acompanhar uma conversa sem se perder no meio das frases. Manter ou melhorar essas capacidades é a diferença entre manter a independência e precisar de ajuda constante em tarefas básicas.
Novas descobertas
O sucesso do modelo FINGER gerou uma rede global de pesquisa. Em 2017 nasceu a World Wide FINGERS, que reúne hoje mais de 25 países para alinhar protocolos, compartilhar dados e adaptar o modelo a diferentes contextos culturais e econômicos — incluindo a América Latina, com o LatAm-FINGERS (12 países) e dois centros ativos no Brasil, coordenados pelos professores Ricardo Nitrini e Paulo Caramelli, entre outros, incluindo a psicóloga Mônica Yassuda. A ideia é testar eficácia da intervenção, medir a adesão “na vida real” e transformar o que funciona em políticas de saúde. Novos dados devem aparecer em um ou dois anos.
Em 2025, vieram os resultados do US POINTER, inspirado no FINGER, mas com uma amostra maior e mais diversa: 2.111 adultos entre 60 e 79 anos, sedentários, com dieta ruim, histórico familiar ou fatores de risco cardiometabólicos. Durante dois anos, foram comparadas duas formas de aplicar mudanças de estilo de vida: uma versão estruturada, com mais encontros e acompanhamento próximo, e uma versão autoguiada, com materiais e orientação, mas menos “mão na massa”.
Em ambos os casos havia encontros regulares, mas no programa estruturado o cardápio era mais intenso: 38 sessões presenciais com equipe multiprofissional, treinamento cognitivo online (três vezes por semana), monitoramento periódico de pressão, colesterol e glicemia, além de um plano de exercícios claro — aeróbico 4 dias por semana, musculação 2 dias e alongamento 2 dias. Na parte da alimentação, a referência foi a dieta MIND, que mistura os princípios da Mediterrânea e da DASH. Traduzindo: comida de verdade no prato (grãos integrais, verduras — com destaque para folhas verdes —, frutas, nozes, peixe, azeite) e corte em carne vermelha, fritura, ultraprocessados e excesso de sal ou açúcar.
O achado-chave foi que ambos melhoraram, mas o grupo estruturado teve ganhos significativamente maiores em cognição global e, de novo, em funções executivas — as mesmas habilidades críticas para manter independência no dia a dia. E mais: o benefício apareceu em todos os subgrupos, inclusive em pessoas que carregavam o alelo APOE-ε4, associado ao risco aumentado de Alzheimer. A adesão foi altíssima: quase 90% completaram a avaliação final, provando que, mesmo no “mundo real”, é possível engajar idosos em intervenções consistentes.
Também em 2025 a Austrália trouxe uma novidade com o Maintain Your Brain: mais de 6.000 pessoas participaram de um programa totalmente online, personalizado para quatro áreas (atividade física, nutrição, treino cognitivo e manejo de depressão/ansiedade). A depressão crônica é um dos fatores de risco importantes para demência. Entre outros pontos, ela pode provocar mudanças físicas no cérebro, como a redução de regiões importantes — como o hipocampo, fundamental para a memória. Depois de três anos, os ganhos cognitivos desse ensaio clínico foram superiores ao grupo controle, mostrando que é possível escalar a prevenção da demência usando ferramentas digitais.
Em resumo: o que começou na Finlândia virou uma rede global de ciência aplicada, atravessou os EUA, ganhou versão digital na Austrália e está sendo testado agora na América Latina e em outros países. Há adaptações nos componentes e no formato de entrega, mas a mensagem é clara: mudanças de estilo de vida podem reduzir de forma relevante o risco de demência e atrasar sua progressão — sobretudo quando vários fatores são combinados.
O mais interessante é que esses ensaios pragmáticos estão desenhando um roteiro valioso não só para indivíduos, mas também para governos: um guia realista de como transformar evidências em políticas públicas de saúde cerebral. Afinal, enquanto a pílula milagrosa não chega (ou mesmo quando chegar), já temos ferramentas capazes de oferecer anos extras de proteção ao cérebro.