Um grupo de jovens rapazes se reuniam todo final de tarde no apartamento de Nara Leão diante de uma janela com vista estonteante para o mar de Copacabana, na zona sul do Rio, para tocarem violão e comporem músicas. Era 1960. Certa vez surgiu convite para que eles se apresentassem numa casa de shows na Urca. Ao chegarem, viram a placa avisando de sua presença: “Grupo Nossa Bossa”. Estava assim (quase) nomeado em definitivo e sem querer o nome do movimento que daria voz a um dos marcos musicais do país: a bossa nova. Um dos que compunham aquele grupo inicial e único vivo hoje é Roberto Menescal, 88 anos. O cantor, compositor e produtor acaba de lançar o álbum O Lado B da Bossa, junto com Cris Delano, no qual resgata composições menos badaladas do gênero. Acaba de voltar de uma turnê pelo Japão, país que idolatra nossa música e, ainda este mês fará um show em Juazeiro (BA), cidade onde João Gilberto, o mais “revolucionário” daquele lendário grupo, nasceu. Convidado do programa semanal da coluna GENTE (disponível no canal da VEJA no Youtube, no streaming VEJA+, na TV Samsung Plus e também na versão podcast no Spotify), Menescal recorda convivências com Tom Jobim e Vinicius de Moraes, as folclóricas pérolas de João, as dicas para Gal Costa, como fez Emilio Santiago estourar, o enfrentamento com Roberto Carlos, além de discorrer sobre Inteligência Artificial e novos nomes da MPB. Assista.
LADO B DA BOSSA. “A Bossa nova, quando surgiu lá no começo dos anos 1960, quatro anos antes da gente já tinha uma pessoa fazendo aquilo: Johnny Alf, um compositor que era muito quieto lá no canto dele. Eu tinha 17 anos, não podia entrar (nos shows dele) porque eram em boates, mas molhei a mão do cara (do segurança) e cheguei lá dentro. E foi um susto, estava Tom Jobim, estava Carlos Lyra… Quando começamos nosso movimento, não tinha nem o nome ‘bossa’. Agora, eu queria mostrar isso, o lado B da bossa. Pouca gente conhece as músicas do Johnny Alf. Procurei outras de pessoas que não apareceram muito e até foram sucesso no comecinho, mas depois esquecidas”.
FÃS NO JAPÃO. “O Brasil é muito grande. Caramba! A música era escondida, a coisa do Rio de Janeiro, São Paulo, a Bahia e nada mais. Hoje você vai em qualquer lugar do Brasil e tem música boa. E até fora do país. Você ouve muita música boa de chorinho, bossa nova e também samba e pagode no Japão, por exemplo. Incrível como gostam de música brasileira. Eles adoram. Aliás, não tem no mundo quem goste mais de música brasileira do que o Japão”.
MERCADO FONOGRÁFICO. “Eu trabalhei (como produtor) na gravadora Polygram durante 15 anos. Imagina, era Chico Buarque de dois em dois meses, todo mundo (com foco em venda de) loja. Hoje não tem mais isso, de repente lançam uma música. Vem Caetano (Veloso) e grava quatro músicas… Mas não tem mais esse veículo ‘disco’. É tudo digital. E o digital vai projetar a música, mas não vai projetar um artista”.
NA CASA DE NARA LEÃO. “A gente não tinha noção de que estava fazendo coisa nova. A gente se reunia muito na casa de Nara Leão, porque ela tinha 16 anos e os pais deixavam a casa com ela… Um apartamento na (avenida) Atlântica, com 15 metros de janela (com vista) para a praia. A gente ficava lá, virou meio um clube, porta ficava aberta. Isso em 1960, quando se deixavam portas abertas no Rio”.
REVOLUÇÃO DE JOÃO GILBERTO. “João Gilberto mudou muita coisa. Mudou tanto, que a coisa do violão dele era impressionante, mudou toda a cabeça da gente. E foi assim que a coisa nasceu. Antes a gente teve o samba-canção, que era bonito, eu adorava, mas eu tinha 18 anos, cara… E as letras? ‘Ninguém me ama, ninguém me quer/ vem pela noite vazia de fracasso e fracasso’. 18 anos e você cantando isso? Não pode. A gente usava bermuda do forro, cantando ‘Ninguém me ama’? Tiramos a gravata da música e mudamos tudo. ‘Se todos fossem iguais a você’, olha que maravilha! Veio o sol, a paisagem para a música”.
REENCONTRO COM O REI. “Uns três meses depois (de Roberto Carlos sair do grupo) começou o negócio da Jovem Guarda na televisão. Eu estava em casa, ouvia algo da TV quando minha mulher falou: ‘o Roberto ali com a Wanderléa’, Depois estourou. Um dia estava indo para São Paulo, no checkin, passa o Roberto, de cachimbo e tudo, não me viu. Fiquei quietinho. Ele rodeado de meninas, aquela euforia. De repente me viu e mandou um ‘obrigado’. A gente riu, de certa forma ele explodiu logo. Mas depois ficamos amigos, tive até agora com ele. Quer dizer, como aquilo mudou a vida dele e do Brasil, né?”.
VENDENDO MILHÕES. “Tem gente que não entende (o produtor), não sabe que temos certeza que aquilo não pode dar certo. Teve Emílio Santiago, por exemplo, que para mim foi um talento. Passei dez anos com ele na gravadora, mas não foi legal, não vendia nada. Tinha certeza que um dia ele seria sucesso. Aí, quando resolvi parar de fazer música durante um tempo, era ditadura, o pau comendo, fiquei só produzindo. Falei: ‘Emílio, tem um projeto que eu queria te mostrar’. Ele achou que não tinha a ver com o público dos seus shows. Eu perguntei: ‘Que público? Aqueles doze lá?’. Fechamos o projeto e ele explodiu (…). O primeiro disco, Aquarela Brasileira, vendeu 850.000 cópias. Ele nunca tinha vendido nem 10.000. Depois vendeu 6 milhões”.
88 ANOS. “Toda idade é um marco, mas 88 anos é bonito. E você botando de lado, os oitos são dois infinitos. Duplo para quem tem dúvida (risos). Na verdade, nem penso nisso. Pensei agora muito, porque fiz show justamente no dia do meu aniversário. Nem penso na agenda da semana que vem, porque se eu for parar para pensar, me atrapalha. Acho que tem uma coisa que é boa: morreu todo mundo da minha turma. Então toda entrevista é comigo (risos). Eu tenho saudade do futuro, sabe, estou vendo as coisas novas chegando. Eu fico fascinado pela meninada”.
Sobre o programa semanal da coluna GENTE. Quando: vai ao ar toda segunda-feira. Onde assistir: No canal da VEJA no Youtube, no streaming VEJA+, na TV Samsung Plus ou no canal VEJA GENTE no Spotify, na versão podcast.