No panteão de símbolos culturais que costumam encher os franceses de orgulho — o queijo, o vinho, a filosofia, as belas-artes, o savoir-vivre, enfim, ainda que soem estereotipados — há espaço também para o generoso e oneroso sistema de bem-estar social. Implementado depois da Segunda Guerra Mundial, com a intenção de recuperar o país das ruínas, ele assegura à população serviços universais de saúde, educação, seguro-desemprego e aposentadoria aos 64 anos de idade. Embora eficiente, a rede de proteção custa ao Estado quase um terço do PIB, a maior proporção entre todos os membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE, o clube dos países ricos. Não por acaso, desde a década de 1970 os déficits no orçamento se sucedem.
É conhecida há muito tempo, portanto, a impossibilidade de fechar os olhos para a crescente dívida pública. Toda tentativa de atacar o problema, porém, produz crises políticas alimentadas por manifestações, greves gerais insufladas pelos sindicatos e, não raramente, movimentos xenofóbicos. Vive-se numa eterna corda bamba, apesar da aparência de normalidade. Esse velho filme se repete agora. Passados quinze meses das eleições legislativas convocadas na marra pelo presidente Emmanuel Macron, em gesto atabalhoado e arriscado, e da escolha de François Bayrou para primeiro-ministro, o navio parece próximo do naufrágio. O premiê, de centro-direita, está perto de perder o cargo, se receber um provável e rotundo “não” da Assembleia Nacional convocada para 8 de setembro, à qual pedirá um voto de confiança.

A desconfiança: Bayrou propôs um corte de 44 bilhões de euros para 2026, valores até modestos, mas que mexeram com o vespeiro: congelamento de aposentadorias e salários de funcionários públicos; flexibilização das leis de seguro-desemprego; e freio ao programa de subsídios a medicamentos. São medidas impopulares, mas nada, nada mesmo, causou mais estrondo do que a tentativa de abolir dois dos onze feriados anuais, de modo a aumentar a produtividade, em anúncio que desagradou a oito em cada dez cidadãos. “Nosso país está em perigo, estamos à beira do superendividamento”, justificou Bayrou, lembrando que a França gasta mais com os juros da dívida do que com investimentos em educação e defesa militar.
A grita desesperada foi em vão. Pesquisas de opinião e analistas são quase unânimes em prever a queda do governo, que controla apenas um terço do parlamento, espremido por estridente oposição tanto à direita quanto à esquerda. Jordan Bardella, o pupilo da ultradireitista Marine Le Pen, que lidera o partido Reagrupamento Nacional, e a esquerda radical, representada por Jean-Luc Mélenchon, se uniram para garantir o voto contrário de suas bancadas. A tesoura do primeiro-ministro é tão impopular que desagradou até às forças moderadas, como o Partido Verde, de centro-esquerda, e parte de seus próprios correligionários.
Por ora, a provável queda de Bayrou, o terceiro ocupante do cargo desde o ano passado, não paralisaria a gestão de Macron — embora represente evidente derrota da República e ilumine a crise financeira de uma nação fundamental para a saúde da União Europeia. A derrocada francesa viria em péssima hora, diante da guerra entre Rússia e Ucrânia, que consome dinheiro e torna o futuro turvo. Pressionado dentro e fora do país, o presidente precisará decidir, em caso de vacância do cargo, se indica um substituto para chefiar o governo ou se convoca novas eleições parlamentares, em busca de maioria.
Não é escolha trivial. Um quinto premiê do segundo mandato de Macron, iniciado em 2022, enfrentaria resistência no Legislativo — e a convocação às urnas não aplacaria os humores. O presidente recorreu à cartada em 2024 e viu o Reagrupamento Nacional, partido de Le Pen, avançar sobre o eleitorado no primeiro turno. Só foi contido porque a esquerda lançou mão de um raro esforço de união, na etapa final, em uma coalizão que lhe rendeu a maior fatia da Assembleia: 193 dos 577 deputados. O centrista Renascimento, de Macron, ficou com 159, graças a uma relutante aliança com os rivais de centro-esquerda para conter o avanço da direita radical, que acabou em terceiro, com 143 assentos. O frágil equilíbrio de forças resultou no primeiro governo minoritário da França desde 1958.

O atual caos é nó difícil de desatar. A situação fiscal da França se agravou nos últimos cinco anos, quando à tradicional gastança social somaram-se os altíssimos custos impostos pela pandemia e o conflito armado entre russos e ucranianos, ali ao lado. Um ano antes de a covid-19 paralisar o mundo, a França já havia tentado atacar o déficit tornando permanente uma série de cortes de impostos, com o objetivo de aumentar a competitividade das companhias nacionais. O plano, porém, nunca funcionou. “Em vez de investir e expandir as atividades, as empresas embolsaram os bilhões de euros que deixaram de recolher”, diz o economista Jerôme Creel, da ESCP Business School. Resultado: o déficit anual está em 168,6 bilhões de euros e corresponde a preocupantes 5,4% do PIB, o dobro do permitido pelas regras da União Europeia. Para piorar, projeções indicam que a economia francesa deve crescer apenas 0,8% neste ano, e o PIB per capita será ultrapassado pela primeira vez na história pelo da Itália. O tarifaço disparado na marra por Donald Trump também ajudou a retrair as exportações das grifes de moda e das indústrias automobilística e vinícola.

Pode piorar? Sim. O aumento de gastos fez o endividamento saltar de 98% em 2020 para 115% do PIB, tornando impossível corrigir o rombo sem cortes. A aritmética básica, contudo, parece não ter apelo. Tão certa quanto a baguete com manteiga no café da manhã é uma greve geral contra o arrocho, anunciada para a próxima quarta-feira, 10, convocada por estudantes e trabalhadores. “Mexer nas proteções sociais, naturalmente, gera uma reação forte e faz a população se mobilizar”, diz Sebastian Roché, cientista político da Universidade Grenoble Alpes. Os observadores de plantão aventam a possibilidade de um repeteco do movimento dos “coletes amarelos”, ocorrido em 2018. Na ocasião, o estopim da revolta foi a elevação gradual do preço dos combustíveis, com impacto direto no custo de vida da população. Os milhares de manifestantes, como se sabe, só deixaram as ruas ao ter as demandas atendidas.
Atiçados pela perspectiva de surfar a onda de insatisfação, os radicais dos dois extremos do espectro político competem em demagogia, prometendo simultaneamente mais benefícios sociais e menos disciplina fiscal. A extrema direita abandonou os princípios neoliberais do Estado mínimo e apontou o dedo para os governos anteriores e para os partidos tradicionais, sem abandonar o discurso de que são os imigrantes ilegais os culpados por elevar os gastos públicos. Já a esquerda, ferrenha defensora da proteção social, martela a batida tecla da taxação de grandes fortunas para engordar os cofres públicos, na tentativa de mostrar que há como fechar a conta.

Não existe qualquer sinal de consenso em uma sociedade irritada e polarizada, mas sobretudo resistente a promover mudanças no estilo de vida. “O círculo vicioso atravessa toda a Europa e as democracias ocidentais”, diz Romain Fathi, professor de história do Instituto de Estudos Políticos de Paris, a Sciences Po. “Os déficits inflamam o populismo, que por sua vez abala a política e inviabiliza a correção dos déficits.” A França, diante de tanta hesitação, sem força para mexer na engrenagem enferrujada que a faz patinar, pode vir a se tornar, do ponto de vista econômico, uma espécie de Gália, atrelada ao passado, peça de um museu de antiguidades — aliás, outro celebrado orgulho tricolor.
Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2025, edição nº 2960