Nos últimos anos, o uso de substâncias psicodélicas em pesquisas e tratamentos psiquiátricos têm aberto uma nova fronteira da ciência. Mas apesar dos resultados promissores, seu uso ainda é visto com preconceito. Há restrições ao estudo dessas substâncias e as conquistas são feitas de forma gradual. Nesse cenário de avanços, a psicoterapeuta americana Kari Gleiser está na linha de frente.
Psicóloga clínica especializada em tratamento de traumas complexos e dissociação, Gleiser é conhecida também por adotar uma metodologia chamada Psicoterapia Dinâmica Experiencial Acelerada (AEDP), abordagem de psicoterapia orientada pela capacidade de transformação do indivíduo. Manteve uma clínica nos Estados Unidos, onde atendia pessoas com histórico de trauma. Hoje, mora na Itália, onde continua suas pesquisas, mas não faz mais atendimentos clínicos. Ao lado do marido, o físico e astrônomo Marcelo Gleiser, realiza encontros e cursos na Ilha do Conhecimento, um espaço que combina autodescoberta, ciência e diferentes disciplinas para discutir o futuro do planeta.
Kari Gleiser está no Brasil para participar da Rio Innovation Week, conferência global de tecnologia e inovação que começa nesta terça-feira, 12. Ela participa de uma mesa de debate com Rick Doblin, psicólogo especialista em psicodélicos. O tema é Mentes que Curam: Psicodélicos, Trauma e o Renascimento da Terapia. O evento acontece até sexta-feira, 15, no Pier Mauá. Ainda há ingressos.

Em entrevista a VEJA, Gleiser fala sobre as pesquisas com substâncias psicodélicas, os avanços, os limites éticos e as dificuldades de trabalhar nessa área. Confira:
De forma simplificada, é possível explicar como funciona a terapia com psicodélicos?
Dizemos que as substâncias psicodélicas são amplificadores não-específicos de experiências. Então, tudo fica maior com essas substâncias. O terapeuta vai ajudar a selecionar o tipo de experiência para botar o foco. Somos como tecelões trabalhando com os fios de experiência que saem de cada pessoa. Ajudamos a fazer com que mais fios saiam para, assim, criar o tecido autêntico de cada pessoa. Os psicodélicos ajudam a fazer esses fios saírem de cada um.
E como isso acontece?
O ser humano adora inventar histórias e identidades. Tudo isso mora aqui, na parte da frente da cabeça. O que eu faço, como terapeuta, é ajudar as pessoas a sair do córtex pré-frontal, e descer rumo a uma experiência corporal. Lá está uma história mais complexa, que não foi inventada pelo cérebro. É repleta de nuances, onde se encontram emoções, sensações, energias e surpresas que muitas vezes as pessoas não sabiam que estavam lá. E, às vezes, os psicodélicos abrem as portas para essas experiências.
Quais as áreas que a pesquisa com substâncias psicodélicas mostra maior potencial? A cannabis, por exemplo, é mencionada como um tratamento eficaz para vários problemas, mas em quais já existe comprovação da eficácia?
A pesquisa científica está só começando a fazer essas perguntas. Porque a cannabis, por exemplo, pode ser usada tanto por pessoas que querem se esconder dos problemas quanto por aquelas que querem enfrentá-los. Tudo depende do contexto do tratamento. Há aqueles que usam de forma recreativa, e outros que buscam um terapeuta. Na cannabis, os usos, no momento, ainda são mais práticos, para tratar ansiedade ou dor crônica, por exemplo. Ela ainda não está sendo usada para psicoterapia. O Rick, com quem vou conversar no evento, acabou de receber permissão dos Estados Unidos para começar as pesquisas de cannabis aplicada à psicoterapia.
Mas existem resultados promissores com outras substâncias?
Sim. Eu estou fazendo um estudo com o hospital Mount Sinai, um dos maiores do mundo, com cetamina, comparando dois modelos. Existe um em que a pessoa recebe a injeção com a substância em um ambiente controlado, fica, tem sua experiência e vai embora. E existe outro, feito com o acompanhamento de um terapeuta, por períodos mais prolongados. É o primeiro estudo do tipo no mundo que vai tentar entender se esse estado alterado de consciência abre uma janela importante para que a psicoterapia possa, de fato, fazer transformações importantes, profundas.
Está mais difícil fazer pesquisas com psicodélicos nesse momento?
Houveram muitos avanços nos últimos anos. Mas ainda é muito difícil fazer pesquisas com psicodélicos em qualquer lugar do mundo, mas especialmente nos Estados Unidos. No ano passado, a FDA (agência que atua de modo semelhante à Anvisa, no Brasil), recusou o pedido feito pela empresa Lykos Therapeutics para a psicologia assistida usando o MDMA (conhecida como ecstasy). A liberação teria aberto muitos caminhos, que agora estão novamente fechados.
Como o preconceito contra essas substâncias atrasam as pesquisas?
É uma verdadeira tragédia, porque elas têm muito potencial para ajudar, mas tudo depende em que mãos estão esses remédios. Se as pessoas que querem um tratamento precisam ir buscar essa substância de forma clandestina, o tratamento tanto pode ajudar quanto acabar em desastre. Se você cria uma regulamentação, dá maior segurança, porque você estabelece parâmetros e indica em quais terapias aquela substância pode ser usada.
Quais são os limites éticos da pesquisa com substâncias psicodélicas?
O terapeuta precisa se perguntar sempre se o tratamento está servindo mais ao paciente ou a ele mesmo. Porque o foco deve ser em ajudar o paciente. Veja o toque, por exemplo. Eu trabalho, em minha terapia, com o toque nos pacientes. Porque eles buscam um lugar de conforto, de acolhimento. E é preciso discutir isso antes do uso de qualquer substância. Se a pessoa quer ou não que toque em sua cabeça. E o que ela falar antes da terapia é o que deve ser levado em conta. Porque se ela mudar de ideia em um estado alterado de consciência, o terapeuta precisa entender isso e não contrariar o que foi combinado antes. Não podemos fazer nada que traga desconforto para o paciente durante e depois.
No nosso mundo hiperconectado, em que qualquer pessoa pode buscar na internet os sintomas de várias doenças, isso afeta o diagnóstico?
Muitas pessoas começam a ver os sintomas de ansiedade, burnout e outras e começam a se identificar e dizer que tem isso ou aquilo. E começam a dizer que estão com transtornos, sem o diagnóstico preciso. É uma dificuldade que muitos terapeutas estão enfrentando hoje. Eu não sou muito fã de rótulos. Eles até podem ajudar em alguns casos, mas também podem atrapalhar. Não acho que dá para colocar rótulos nesse mundo intrapsíquico de sombras e luzes, um sistema super complexo de emoção, de relacionamentos. É preciso aguentar essa complexidade e trabalhar com esse mundo interno para entender o que cada paciente tem, para então sair, mudar e evoluir.