Na cultura ocidental, os elos românticos vêm ocupando lugar central, como uma espécie de coluna vertebral para a plenitude na vida adulta. É uma ideia em ascensão desde o século XVIII, quando o casamento, antes uma união de conveniências variadas, passou a ser alimentado pela noção do amor verdadeiro. De lá para cá, a humanidade foi se distanciando de uma tecla para lá de martelada por gregos como Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) — ele e outros expoentes da Antiguidade Clássica alçavam a amizade à condição de mais virtuosa de todas as relações, considerando-a superior até mesmo aos laços sanguíneos. Peso semelhante lhe era dado no Império Bizantino, onde havia cerimônias religiosas para transformar amigos em “irmãos espirituais”, um status quase matrimonial, com direito a troca de votos e bênçãos eclesiásticas. Na Europa Medieval, tal valorização se materializava em contratos que formalizavam pactos de lealdade prevendo até implicações jurídicas e econômicas.
Foi a passagem do tempo, com suas radicais sacudidas no campo dos costumes, que sedimentou nas sociedades modernas a compreensão de que o sucesso afetivo está ligado, de forma indissociável, às realizações no terreno amoroso. Pois um livro que virou best-seller mundial, a partir de extensa e cuidadosa pesquisa, A Vida É Melhor com Amigos (Ed. Vestígio), recém-lançado no Brasil, retoma o tema após uma vasta pesquisa que não só revisitou o passado como observou o presente sob nova perspectiva. Com base em entrevistas com dezenas de pessoas que mantêm amizades longevas, a americana Rhaina Cohen relativizou o que chama de “hierarquia dos vínculos”, defendendo que, em muitos casos, os alicerces firmados entre amigos podem conter a mesma solidez e, não raro, mais leveza do que as alianças sentimentais. “Quando esperamos que um parceiro preencha 100% nossas demandas emocionais, isso tende a minar a relação, que deixa de ser saudável”, disse a autora a VEJA. À luz de sua investigação, ela constatou que os níveis de satisfação sobem quando a emoção não é canalizada para uma só pessoa. “Se temos múltiplos laços, o sistema de apoio é mais robusto”, conclui.
Num mundo que hoje repensa os arranjos familiares tradicionais, a escritora americana enfatiza o avanço do contingente de amigos que chega a dividir o mesmo teto já na fase adulta, com tudo o que pode vir embutido aí: rachar despesas, tarefas domésticas e até projetos de vida. No Brasil, o grupo contabiliza 2 milhões de pessoas, segundo o Datafolha. Mas não é preciso ir tão longe para nutrir bons laços de amizade. De acordo com o conhecimento já acumulado sobre o tema, o que faz a diferença é a assiduidade do convívio, algo nem sempre tão trivial diante da infinitude de afazeres modernos. Cultivar tais relações exige sem dúvida mais esforço do que no matrimônio. A reportagem de VEJA colheu depoimentos diversos de gente que organiza a agenda para incluir amigos de diferentes círculos, como o estudante de publicidade Germano Cerqueira, 23 anos. “Eles são minha grande rede e, mesmo quando engatar em uma relação séria, nunca vou deixá-los para trás”, garante.

A relativização da ideia de que o núcleo familiar se origina unicamente da subida ao altar pode se desdobrar, nestes tempos de intensa criatividade, em arranjos inesperados. A estilista Bianca Jahara, 45 anos, compartilhava tantos valores com o empresário Hugo Collares, seu fiel amigo há duas décadas, que decidiram ter um filho, sem nenhum vínculo amoroso nem tampouco um teto em comum. “Eu escolhi o pai da minha filha sem o amor de um casal, mas com uma visão parecida de mundo”, explica ela, mãe de Ayla, hoje com 1 ano. Embora seja uma exceção, o caso faz refletir sobre esse novo olhar que emerge em torno da amizade, como peça essencial para a existência. Formada em relações internacionais, Mariana Quintanilha, 23 anos, namora há dois, mas sempre entendeu que os amigos não deveriam ser plano B ou C. “Eles me ajudam a respirar outros ares, pensar sob outros ângulos”, diz ela, que descobriu aí um saudável ponto de equilíbrio.
Um estudo da Universidade Harvard, que vem acompanhando gerações ao longo de oito décadas, deu contornos científicos à importância das amizades em todas as etapas da vida. Nenhum outro fator, segundo a pesquisa, é mais definidor da felicidade e contribui tanto para a longevidade, superando variáveis como renda ou genética. A série de benefícios é ampla — quem cultiva conexões dessa natureza apresenta menor declínio cognitivo, redução de inflamações crônicas e maior capacidade de lidar com crises emocionais. “Ter com quem contar é crucial para o nosso bem-estar. Amigos nos ajudam a lidar com sentimentos e situações desafiadores”, explica a VEJA o psicólogo Marc Schulz, à frente do levantamento de Harvard.
São dados que merecem especial atenção nesta era em que os elos de amizade se transportam para o ambiente virtual, onde as interações costumam ser ligeiras e envoltas em superficialidade, o que pode levar à solidão — uma epidemia moderna. A metade dos americanos declara contar com menos de três pessoas próximas, conforme levantamento da Pew Research, que reflete realidade sabidamente global. Que a humanidade consiga dar uma pausa na celeridade contemporânea e abra os ouvidos a palavras como as de Platão, um dos grandes gregos: “A amizade é uma predisposição recíproca que torna dois seres igualmente ciosos da felicidade um do outro”. Fica a dica, amizade.
Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2025, edição nº 2956