Pagar imposto no Brasil é uma tarefa hercúlea. Só para preencher, mês a mês, a guia do IPI (imposto sobre produtos industrializados), uma fábrica instalada no país precisa consultar uma tabela com 460 páginas e mais de 3 000 itens, cada um com uma alíquota específica. Água de colônia paga 7,8% de IPI. Perfume, 27,3%. Um bombom paga 3,75%, mas, se for wafer recheado com chocolate, é isento. Caixas de papel recolhem 9,75%. Se o papel for ondulado, a alíquota sobe para 15%. E a confusão do IPI é apenas uma parte do labirinto tributário. Emitir nota com ICMS, o imposto estadual sobre mercadorias, é outro desafio, agora multiplicado por 27, já que cada estado tem sua própria legislação, com alíquotas, regras e sistemas de declaração distintos. O ISS, cobrado sobre serviços e de competência municipal, acrescenta outras intransponíveis 5 569 normas ao cardápio, uma para cada cidade do país.
A partir de 1º de janeiro, esse nó tributário começa, enfim, a ser desatado. A data marca o início da transição para o novo sistema de impostos sobre consumo desenhado pela reforma tributária aprovada em dezembro de 2023. Depois de longa tramitação no Congresso, o modelo extingue os tributos atuais — PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS — e os substitui por dois: a contribuição sobre bens e serviços (CBS), federal, e o imposto sobre bens e serviços (IBS), compartilhado por estados e municípios. Inspirados no padrão internacional dos impostos sobre valor agregado (IVA), eles têm funcionamento distinto do sistema anterior: na prática, deixam de tributar insumos, eliminam a cobrança em cascata de imposto sobre imposto e passam a operar com uma alíquota essencialmente uniforme para quase tudo, em todo o país, sob uma legislação única que revoga milhares de normas espalhadas pelo território nacional.
A substituição dos impostos antigos pelos novos será gradual, de 2027 a 2033, quando a alíquota definitiva passará a valer integralmente. A partir de janeiro de 2026, as empresas, exceto as do Simples Nacional e os microempreendedores individuais, terão de indicar nas notas fiscais uma pequena parcela da CBS e do IBS. Quem não se adaptar poderá até ser multado, a depender de como a Receita Federal calibrar as exigências deste primeiro ano. “Os novos impostos ainda não vão ser cobrados e a ideia não é punir ninguém”, diz Bernard Appy, ex-secretário da Fazenda que liderou o desenho da reforma tributária. “O ano de 2026 é de adaptação, porque há uma série de adequações que não são simples e todas as empresas precisam chegar preparadas para 2027.” Com esse esforço nacional de coleta de dados, a Receita começará a estimar e ajustar a alíquota dos novos tributos, que será definida ao longo da transição com o objetivo de manter o nível atual de arrecadação.
O consenso entre especialistas é que a reforma tributária do consumo tira o Brasil de um atoleiro de complexidade e ineficiências e o leva a um sistema bem mais moderno, simples e transparente. O percurso até lá, porém, está longe de ser trivial. Empresas se veem às voltas com uma enxurrada de ajustes internos, parte da regulamentação ainda está em aberto e a própria Receita corre contra o relógio para definir normas e colocar de pé os sistemas que vão sustentar o novo modelo. “Vai ser necessário um sistema de processamento de dados gigantesco, e nós nem sabemos se a Receita tem infraestrutura suficiente para isso”, afirma o advogado tributarista Adolpho Bergamini, colunista de VEJA NEGÓCIOS. Procurada, a Receita Federal não se manifestou.

Do lado dos contribuintes, o percurso também ficará marcado por uma série de obstáculos. “As empresas precisam atualizar todos os seus sistemas de emissão de nota fiscal para já poder emitir os documentos novos no começo do ano, mas são pouquíssimas as que conseguiram ter isso pronto”, afirma Luis Wulff, CEO da consultoria Tax Group. O escritório, que esperava cerca de 100 novos projetos ligados à reforma, encerrou 2025 atendendo mais de 600 clientes em busca de simulações e orientação, e dobrou o quadro de 100 para 200 funcionários para dar conta da demanda. “A reforma vem para reduzir o tempo perdido em ficar replicando dados”, afirma Mariana Carneiro, sócia e líder de reforma tributária na consultoria PwC. “Mas as coisas vão piorar antes de melhorar, porque será necessário um número maior de horas agora para aprender a nova regra, antes que o sistema mais complexo deixe de existir e o mais simples possa permanecer.”

À medida que o início da reforma se aproxima, empresas dos mais variados setores começam a enxergar com mais nitidez quais serão, na prática, suas novas obrigações com o Fisco ao fim da transição — e, para muitas, a conclusão contraria a ideia de que tudo ficará “muito mais simples”. Diversos negócios, em especial prestadores de serviços, terão de lidar com um fluxo totalmente novo de notas fiscais e declarações de créditos tributários que hoje não fazem parte da rotina de trabalho. Com a unificação dos impostos e uma alíquota única aplicada de forma ampla, há ainda quem deva sair pagando mais. “Estimamos que só o nosso gasto com PIS e Cofins fique 60% maior quando a CBS passar a valer”, afirma Robson Boni, responsável pela contabilidade da Digisystem, fornecedora de sistemas e serviços de tecnologia para empresas e governos.
A CBS vai reunir os tributos federais PIS, Cofins e IPI e passa a valer em 2027. A partir de 2029, começa a fusão gradual de ICMS e ISS no novo IBS. “Nós nem calculamos os impactos dessa segunda fase, mas, se for como está sendo desenhada, não haverá margem que aguente”, diz Boni. Atualmente, a Digisystem, como a maioria das empresas de serviços fora do Simples, recolhe 3,65% do faturamento em PIS/Cofins e algo próximo de 3% em ISS. Em 2033, porém, a conta deve ser outra: 28% de CBS e IBS somados, alíquota estimada pela Fazenda para os novos superimpostos. “Os serviços são os que terão o maior aumento de carga e vão precisar reduzir margem, porque o salto será gigante e não haverá espaço para repassar tudo para o consumidor”, afirma Sarina Manata, assessora jurídica da FecomercioSP.

Na indústria, a lógica tende a ser justamente a oposta. Hoje um dos setores mais penalizados pela carga tributária, ele deve ser um dos principais beneficiados pela reforma. Com cadeias longas de fornecedores, a indústria tende a ganhar em duas frentes: um IVA unificado em torno de 28% ficará abaixo do que paga atualmente, e a aplicação plena do sistema de créditos tributários sobre insumos deve aliviar o caixa. “Temos uma carga nominal de 45,9%, então será uma redução de mais de 17 pontos percentuais para um IVA estimado em 28%”, calcula Flávio Unes, diretor titular jurídico da Federação das Indústrias de São Paulo. “Vale lembrar que o comércio vende os produtos feitos pela indústria, então essa redução deve chegar ao consumidor também”, afirma Mario Sergio Telles, diretor de economia da Confederação Nacional da Indústria.
Colocados na balança os ganhos e as perdas, a conta ainda tende a fechar no azul. “O sistema que temos hoje é litigioso, ineficiente, gera custos elevados e corrói a competitividade das empresas brasileiras”, afirma Carlos Renato Vieira, sócio e especialista em tributação do escritório TozziniFreire. “Em 2033, depois de atravessarmos uma via-crúcis nessa transição, teremos um ambiente de negócios melhor, mais transparente e com menos distorções.” Se esse prognóstico se confirmar, o país inteiro vai ganhar.
Publicado em VEJA, dezembro de 2025, edição VEJA Negócios nº 21

