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Acabou o dinheiro

Líderes de partidos se amontoavam na sala da residência do presidente da Câmara, Hugo Motta, em Brasília. Não haviam saído de casa numa noite fria e seca de domingo de outono preocupados com as contas públicas que não fecham. Estavam lá para cobrar do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, garantias de que obras e serviços nos municípios serão pagos como eles determinaram nas emendas parlamentares ao Orçamento. São bilhões de reais que podem fazer a diferença no ano eleitoral de 2026, quando oito em cada dez deputados federais planejam se candidatar à reeleição.

Haddad é visto no Congresso como principal candidato do Partido dos Trabalhadores no ano que vem, como eventual substituto de Lula ou na disputa ao governo de São Paulo. Ele escolhe palavras com cuidado, principalmente ao conjugar o verbo “cortar” quando fala aos parlamentares sobre despesas que crescem muito mais rápido do que receitas.

— Nós abrimos a caixa-preta do Orçamento — disse, ao comentar a ineficiência dos programas sociais incorporados ao condomínio de interesses das oligarquias partidárias, não importa o governo. Alguns desses projetos considerados intocáveis, ele acha, estão contaminados por falta de critérios de eficácia e correm risco de acabar “demonizados”.

Deu o exemplo da assistência financeira aos pescadores, que inclui subsídio estatal ao preço do óleo diesel consumido nas embarcações. Os pagamentos somaram 4 bilhões de reais entre janeiro e abril, ou seja, 57% a mais do que nos primeiros quatro meses do ano passado. Na planilha anual, o gasto subiu 38% e deve superar 6 bilhões de reais.

Haddad recorreu aos dados oficiais para demonstrar que alguma coisa está fora de ordem, sem desordem climática que justifique: — Pelo Censo do IBGE, nós temos 300 000 pescadores artesanais no país. No entanto, estamos com 1,9 milhão de requerimentos (de auxílio estatal) no Ministério da Pesca.

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“Inflados por interesses políticos, programas sociais correm risco de ‘demonização’ ”

Segundo a folha de pagamentos do governo federal, mais da metade (54%) dos profissionais da pesca no Brasil vive entre o Maranhão e o Pará. É pouco mais de 1 milhão de pessoas, o equivalente à população das capitais São Luís e Belém. É, também, seis vezes a soma de pescadores registrados nos sete estados do Sudeste e do Sul.

Não é acaso nem caso isolado. A proliferação de cadastros sociais de qualidade duvidosa para acesso ao auxílio financeiro estatal tem sido relevante na consolidação dos interesses de grupos políticos com domínio do poder. Alguns deles, vinculados a organizações sindicais, devem ficar expostos no choque entre governo e oposição, a partir de agosto, na CPMI da roubalheira do INSS. As perdas são estimadas em 6 bilhões de reais, valor similar ao custo do socorro estatal aos pescadores.

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São 95,3 milhões os brasileiros que hoje dependem do Estado para ter uma renda de sobrevivência ou complementar o orçamento familiar. O ano começou com quase metade (45%) da população classificada em cadastros do governo federal como “grupo vulnerável e/ou prioritário para acesso e usufruto” de assistência financeira estatal.

A maioria (53%) está em idade ativa para trabalhar e tem título de eleitor. Oito em cada dez não completaram o ensino básico, indicam os dados do Cadastro Único, porta de acesso a duas dezenas de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família. É massa de adultos empobrecidos, cobiçada como “ativo” no mercado eleitoral porque a subsistência depende, ao menos em parte, da competência gerencial, do humor e dos interesses dos donos do poder local. Já representam mais de dois terços da população do Maranhão, Pará, Piauí, Amapá, Acre, Ceará e Bahia.

O ministro da Fazenda se diz preocupado com a “demonização” das iniciativas de transferência de renda. É coisa antiga. No fim do século passado, por exemplo, Lula criticava os projetos sociais dos governos adversários; quando entrou no Palácio do Planalto unificou-os no Bolsa Família. Esse programa foi usado como arma eleitoral em 2022 por Jair Bolsonaro, que multiplicou o valor do repasse mensal (para 600 reais) — mas não adiantou, ele perdeu nas urnas.

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Governo e Congresso não gostam de debater a eficiência em programas de transferência de renda para a maioria pobre. Há muito tempo isso deixou de ser uma questão teórica sobre a falência — ou não — das utopias sociais. Agora é um problema de caixa, que pode ser resumido assim: acabou o dinheiro.

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 20 de junho de 2025, edição nº 2949

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