counter A última fronteira da escrita na era da inteligência artificial – Forsething

A última fronteira da escrita na era da inteligência artificial

Como dar vida à sua escrita em tempo de robôs? Essa é uma pergunta poderosa — especialmente no mundo atual, onde algoritmos produzem textos em segundos e robôs podem imitar estilos, ritmos e sentimentos. Mas, justamente por isso, dar vida à escrita se tornou ainda mais importante. Busque o detalhe, não o óbvio. A inteligência artificial (IA) é ótima em lugares-comuns. O escritor vivo foge deles. Em vez de “o céu estava azul”, que tal “o céu parecia limpo como se tivesse sido passado a ferro por Deus”?

O trecho acima, de 88 palavras, um único parágrafo, correto na aparência, mas repleto de banalidades — e que desfecho terreno —, foi escrito em dez segundos por meio da versão número 4 do ChatGPT, ferramenta de IA generativa lançada em maio do ano passado. É a prova de que uma das incômodas conclusões do novo livro do escritor mineiro radicado no Rio Sérgio Rodrigues está correta: “Não é que a escrita literária vá desaparecer, mas ela vai se tornar — e já está se tornando — uma aldeia gaulesa, a última resistência à escrita dos robôs”. Em Escrever É Humano: Como Dar Vida à Sua Escrita em Tempo de Robôs — daí a indagação que abre esta reportagem, feita ao ChatGPT —, Rodrigues ilumina uma aventura ainda nebulosa, de passado rarefeito, presente que nos escapa e um futuro inalcançável: chegará o dia em que as máquinas escreverão como nós, sobretudo obras de ficção?

Não chegará, é o que sabemos aqui e agora. O que virá depois, amanhã mesmo, é suposição, em história impossível de ser escrita antes da hora — até porque a inventividade da civilização, apesar das guerras, apesar dos horrores, apesar dos desentendimentos, sempre tratou de driblar a tecnologia, quando ela cismou em nos imitar, dando um passo para a frente. Há mais de 5 500 anos, na Mesopotâmia, os sábios inventaram o ábaco para fazer contas. As calculadoras eletrônicas deram novo salto no século XX. Depois vieram os computadores e então a IA — frutos da criatividade de gente. E, ao menos por ora, essas coisas de silício parecem estar um naco atrás de nós, embora assustem.

O subtítulo de Escrever É Humano, ao usar o recurso do “como…”, tem um quê dos manuais de socorro pessoal, mas que nada: é muito mais profundo. De Rodrigues a VEJA, sem o auxílio de IA: “O livro é de autoajuda na medida em que é também um manual de escrita, quer dizer, um guia que pode ser útil no aprendizado de um ofício. Ao mesmo tempo, é um livro de autoatrapalhação porque nega que existam fórmulas e recusa aquele que é o maior dogma da autoajuda, o de que todo mundo pode ser o que quiser, bastando se esforçar o suficiente. Essa mensagem tem apelo comercial, mas não me parece muito honesta”.

ESCREVER É HUMANO, de Sérgio Rodrigues (Companhia das Letras; 198 págs.; R$ 79,90 e R$ 39,90 em e-book)
ESCREVER É HUMANO, de Sérgio Rodrigues (Companhia das Letras; 198 págs.; R$ 79,90 e R$ 39,90 em e-book)./.
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O volume deixa algumas poucas perguntas no ar e nos inunda de respostas. A um só tempo, assusta e reconforta. Assusta porque os ChatGPTs da vida são capazes de escrever muito bem textos mecânicos, rasos, robóticos, por assim dizer, “um lero-­lero não só aceitável como — o que é bem embaraçoso — melhor que o da imensa maioria dos escribas humanos”. Reconforta saber, contudo, que nunca terão sentimentos. Não dá para um robô escrever com a habilidade, inteligência e clareza de Rodrigues, limpo como em céu azul. Não dá também para desdenhar da IA, que deixou de ser um problema e virou realidade. Contudo, os limites parecem claros, e fica o desafio à mais avançada das máquinas: o de escrever versos como os de Chico Buarque ao jogar com as palavras como em Bem Querer — “quando o meu bem querer me vir / estou certa que há de vir atrás” —, misturando o futuro do subjuntivo na terceira pessoa do singular do verbo ver e o infinitivo do verbo vir.

Rodrigues tem a fineza de não pôr a IA na lata de lixo, por já não ser possível fazê-lo. Ele reconhece o uso da máquina em dois aspectos do escrever como ofício. Primeiro: a IA será tema de livros ficcionais, incorporada nas narrativas como assunto e recurso criativo. Segundo: do ponto de vista econômico, é natural que trabalhos de cunho mais popularesco, como os das novelas água com açúcar que eram vendidas em bancas de revistas e hoje na Amazon, bebam dos robôs, tomem o emprego de quem faz trabalhos cuidadosos, mais literários, por assim dizer. E é provável que uma mesma pessoa divida seu tempo entre as duas atividades: a mecânica e a humana.

Vive-se um divisor de eras. Recentemente foi divulgado um estudo que pela primeira vez mediu os estragos mentais da IA. Pesquisadores do Laboratório de Mídia do MIT dividiram os 54 participantes de uma experiência — de 18 a 39 anos — em três grupos. A eles foi pedido que escrevessem várias redações, como as de provas vestibulares, apoiados em três modalidades: o ChatGPT, o mecanismo de busca do Google e nada, a não ser a própria massa cinzenta. O cérebro de cada indivíduo foi conectado a sensores, de modo a registrar a atividade neurológica. Os usuários do ChatGPT apresentaram o menor engajamento cognitivo, em desempenho “consistentemente inferior nos níveis neural, linguístico e comportamental”. Ao longo de meses, os usuários de algoritmos ficaram mais preguiçosos a cada redação subsequente, recorrendo ao recurso de copiar e colar. É triste, novidade que desarruma a cama onde nos deitamos, mas nada de achar que possa ser passada a ferro por Deus — ou um robô que, por não ter coração, pode ficar sem palavras, como anota a doutora em literatura pela UnB Ligia Gonçalves Diniz, ao comentar o trabalho de Rodrigues. Contudo, não é impossível que um deles, em 2000 e pedrada, ao folhear o livro, mal entenda que escrever um dia foi humano.

Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2025, edição nº 2956

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