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A rotina de medo dos 28,5 milhões de brasileiros reféns do crime organizado

Carros queimados, estacas de ferro, trilhos de trem, cancelas — eis uma lista das barreiras que precisam ser cotidianamente vencidas por um naco expressivo da população do Rio de Janeiro para tão simplesmente chegar em casa. São obstáculos carregados do mais deletério dos simbolismos: fincados nas entradas de populosas favelas, eles têm o propósito de frear a polícia e demarcar onde termina o poder do Estado, com tudo o que embute, e começa o domínio do crime, que vem se apossando ao longo de décadas de vastos territórios à base da intimidação e do medo — medo não, pavor. Quem leva o dia a dia na mira dos fuzis sabe bem que a vida sob as regras das quadrilhas, seja do tráfico, seja da milícia, depende da régia obediência a uma cartilha que todo mundo conhece de cor. “Carro de aplicativo não sobe aqui, esquece. Somos obrigados a usar o sistema de mototáxis dos bandidos e, se recebo alguém, preciso ir buscar fora da comunidade, para não correr riscos”, diz uma residente de Itaboraí, na região metropolitana, que, como outras pessoas ouvidas pela reportagem de VEJA, não revela o nome e prefere nem dar as iniciais.

O avanço territorial dos criminosos não apenas no Rio, mas por todo o Brasil, espanta pela velocidade e a dimensão que tomou. Entre os especialistas, não há dúvida de que as barreiras dos marginais devem ser derrubadas e o terreno que eles mantêm à sombra da violência, retomados — medida essencial do ponto de vista dos que sofrem com os desmandos da bandidagem e sob o ângulo do funcionamento da sociedade de forma mais ampla. É tarefa de elevada complexidade, como se viu na Operação Contenção, no último dia 28, quando o governo Cláudio Castro despachou 2 500 agentes para os complexos da Penha e do Alemão, na Zona Norte carioca, onde está instalado o QG do Comando Vermelho, a maior facção do Rio. Os policiais foram recebidos com saraivadas de tiros de fuzis e até drones lança-granadas. No confronto, quatro policiais morreram. Do outro lado, as baixas foram muito maiores: 117 mortos (dos quais, 95% tinham vínculo comprovado como o CV, segundo o governo fluminense) e 99 prisões. Após essa ação que bateu recorde histórico de letalidade, uma questão essencial — que, aliás, mobiliza a classe política, de olho no impacto eleitoral do emergencial tema da segurança — segue candente: como extirpar de vez esse mal do castigado tecido social? Não há resposta única nem simples.

A TEIA DO PREJUÍZO - Bandidos ingressaram no ramo da internet: ai do morador que contratar uma operadora
A TEIA DO PREJUÍZO - Bandidos ingressaram no ramo da internet: ai do morador que contratar uma operadoraPolícia Civil RJ/Reprodução

Na segunda-feira 3, na Penha, o cenário era de aparente normalidade — ao menos para os padrões de uma comunidade tutelada pelo crime. Uma funcionária de uma loja de celular, vizinha à praça onde corpos ficaram estirados no dia seguinte à operação, disse à reportagem, resumindo o tom geral de resiliência: “A vida tem que continuar”. E, apesar do baque sofrido pelo Comando Vermelho (CV), ela continuava sob a vigília de olheiros monitorando o movimento e mototaxistas circulando sem capacete para facilitar a identificação pelos soldados do crime. “Só hoje consegui dormir”, contava uma mulher a uma amiga que, mesmo calejada, constatou: “Nunca vi tanto fuzil”. Ninguém ousa pronunciar palavras comprometedoras nem lá nem em outras bandas onde as gangues sofisticam seus negócios, assim como seus métodos de coação. “O segredo para sobreviver é cabeça baixa e boca fechada”, resume a empregada doméstica V.D., 58 anos, residente de uma área de milícia na Baixada Fluminense, que comprou a duras penas seu apartamento e agora paga ágio de 50% no condomínio por incluir uma certa “taxa da portaria”, montante que, sabidamente, vai parar no bolso dos grupos armados. “Nossa segurança é garantida por eles”, justifica a síndica, que não ousa dar nome aos bois.

DAQUI NÃO PASSA - Carro queimado serve de barricada: os marginais é que autorizam a entrada
DAQUI NÃO PASSA - Carro queimado serve de barricada: os marginais é que autorizam a entradaElias Junior/Fotoarena/Folhapress/.

O domínio de imensas áreas pelo crime tem suas raízes plantadas no Rio de Janeiro dos anos 1980, quando o CV, nascido dentro de um presídio, tal como outras facções, alastrou suas atividades: dos roubos armados saltou para o tráfico de drogas, percebendo no aumento do fluxo de mercadoria vinda de países produtores uma oportunidade. “Como o tráfico exige o controle dos pontos de venda da droga, se fez necessário ter poder sobre os territórios”, afirma o sociólogo Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da UFF. Dissidências internas dariam mais tarde origem a gangues como o Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigo dos Amigos (ADA), o que fez ingressar no glossário da violência as “guerras por território”, não raro sangrentas. Na década de 1990, as milícias, compostas de policiais e ex-policiais vistos no princípio com equivocada benevolência, escalaram um degrau ao tomar posse de bairros inteiros e monopolizar o fornecimento de serviços básicos como gás, transporte, moradia, internet e até água — prática que os traficantes depois assimilaram. “É consenso que, com a proporção que ganharam, os variados negócios do crime somados já dão mais lucro do que o comércio de drogas”, pontua Hirata.

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Não há um único estado brasileiro sem a presença de uma facção dando as cartas, quase sempre em áreas de maior concentração de pobreza e menor atuação do poder público. Sob seu jugo vivem atualmente 28,5 milhões de brasileiros, 19% da população (veja no quadro). Nessas áreas, é dura a vida de quem quer empreender. Um morador de Rio das Pedras, sede de uma milícia na Zona Oeste, inaugurou um pequeno mercado por ali que ia muito bem, mas tantas eram as extorsões — na linha de “se não pagar, leva bala” — que encerrou o negócio em questão de meses. “Me sinto refém em minha própria casa”, desabafa G.H., 32 anos. Segundo o Atlas da Violência, as perdas anuais decorrentes dessas ilegalidades chegam a 5,9% do PIB do país, o que abrange desvalorização de imóveis, impactos no turismo e concorrência desleal na exploração de serviços.

EM EXPANSÃO - Muzema, no Rio: tráfico avança até no mercado imobiliário
EM EXPANSÃO - Muzema, no Rio: tráfico avança até no mercado imobiliárioCustodio Coimbra/Agência O Globo/.

São, infelizmente, fartos os exemplos de como a bandidagem atrapalha diferentes mercados, como ocorre com as operadoras de celular, que acabam não conseguindo alcançar os 270 000 domicílios da região metropolitana do Rio. De um lado, esbarram com os fuzis. Do outro, têm como competidores os marginais, não por acaso donos de clientela cativa nesse setor em que também atuam. “A competição é feita na bala, e não pelas regras de mercado, o que mina a produtividade e alimenta o crime”, aponta o economista Daniel Cerqueira, à frente do Atlas da Violência. “Ou você vai na empresa dos bandidos, um lugar a portas fechadas, ou fica sem internet em casa”, resigna-se outra moradora da Baixada Fluminense. No caso da Light, a concessionária de energia, quase um quarto dos clientes cadastrados não paga a conta, porque os técnicos não conseguem furar as trincheiras nas favelas para pôr fim aos “gatos”. O avanço dos criminosos no ramo imobiliário é mais um nó difícil de desatar — eles grilam a terra, sobem o prédio e, quando já está de pé, vão atrás da legalização. Muitas vezes, dá certo: vendem o imóvel mesmo sem alvará. “As facções entenderam que poderiam ganhar em cima do déficit habitacional do país”, observa Rodrigo Pimentel, ex-integrante do Bope, a tropa de elite do Rio.

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Os efeitos da violência diária com a qual tanta gente precisa lidar são sentidos desde cedo. O ano letivo dos 217 000 alunos da rede municipal que estudam em zonas conflagradas é marcado por constantes interrupções em razão de tiroteios que obrigam a criançada a se jogar no chão para se proteger de balas perdidas. “Se nós que somos adultos temos medo, imagina quem ainda não amadureceu suas emoções”, pondera Y.A., uma educadora de localidade dominada pelo CV em Brás de Pina, na Zona Norte. Os atendimentos na área da saúde mental nessas comunidades são frequentes e crescem — 25% na rede municipal só neste ano. “Surge muita síndrome do pânico, depressão e ansiedade”, diz a psicóloga Lurdes Oberg. Os profissionais na linha de frente garantem que os números, já altos, são subestimados. “Vizinhos passam mal cada vez que os marginais aparecem para cobrar a taxa de segurança. Idosos lhes entregam todo o benefício que recebem do governo para comprar remédios e não falam nada por medo”, lamenta um residente da Muzema. A taxa, criada pela milícia, hoje é operada pelo tráfico, que recentemente dominou a região. Quem precisa de socorro muitas vezes vive uma epopeia para ser atendido, como se vê em Costa Barros, também na Zona Norte. “Duas barricadas ali impedem a passagem da ambulância, aí o paciente precisa ser conduzido de cadeira de rodas por duas quadras até chegar a ela”, conta Daniel Soranz, secretário municipal de Saúde.

O que se observa com cores gritantes no Rio está longe de ser um problema local. Ao contrário: ele ganha a cada dia escopo nacional. Foi a disputa por rotas do tráfico que fez as facções se ramificarem pelo Brasil, cada qual do seu jeito. Enquanto o carioca CV opera em sistema descentralizado, como espécie de franquias, o paulista PCC se estrutura em hierarquia rígida, mais parecido com as máfias. A contenda entre eles começou nos presídios, após a transferência de chefes de ambos os grupos sobretudo para as regiões Norte, próxima de países produtores de drogas, e Nordeste, bem abastecida de portos prontos para escoar a mercadoria para a Europa e os Estados Unidos. A expansão ganhou gás em rincões mais pobres, embalada pela promessa de abertura de mercados, sem ser contida pelas despreparadas forças de segurança. “As facções se organizam onde o Estado abandonou as pessoas e depois as tiranizam”, sintetiza Ricardo Balestreri, ex-secretário nacional de Segurança Pública e coordenador do Núcleo de Urbanismo Social e Segurança Pública do Insper.

DOLOROSA LIÇÃO - Crianças se jogam no chão para se proteger de tiros: aula paralisada em meio ao conflito armado
DOLOROSA LIÇÃO - Crianças se jogam no chão para se proteger de tiros: aula paralisada em meio ao conflito armado./Reprodução

Nos últimos anos, estados como Ceará, Bahia, Pernambuco e Amazonas registraram uma disparada inédita na violência provocada por quadrilhas. Em um distrito do município cearense de Morada Nova, a 200 quilômetros de Fortaleza, pelo menos 2 000 moradores deixaram suas casas a toque de caixa depois de receberem ameaças da bandidagem em disputa por território. Em julho, invasões de imóveis, pichações em muros e mensagens disseminadas nas redes tanto pela facção local, a Guardiões do Estado, como pelo Terceiro Comando Puro do Rio espalharam o medo, e o antes animado povoado virou cidade fantasma, com ruas desertas. A prefeitura baixou um decreto reconhecendo a “situação anormal e emergencial” e até disponibilizou um caminhão para quem quisesse ir embora — a evidência mais eloquente da rendição de uma autoridade no país para os bandidos. Passados quatro meses, escolas, igreja e posto de saúde seguem fechados. O governo estadual intensificou as patrulhas e prendeu suspeitos, mas a população não se sente segura para regressar.

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CIDADE FANTASMA - Morada Nova, no Ceará: a bandidagem em disputa por território fez ameaças e todo mundo fugiu
CIDADE FANTASMA - Morada Nova, no Ceará: a bandidagem em disputa por território fez ameaças e todo mundo fugiu./Divulgação

A inaceitável situação que faz lembrar o cangaço, aquele tipo de banditismo que teve o Nordeste como palco entre o fim do século XIX e o início do XX, vem perigosamente ganhando impulso no Ceará. Em setembro, trinta famílias também deixaram suas residências para trás no vilarejo de Pacatuba, perto da capital, outra vez em razão de embates entre quadrilhas. Ameaças são constantes. “Disseram que jogariam granadas, incendiariam os imóveis e encheriam a nossa cara de bala”, relata um morador de uma fatia de terra dominada pelos Guardiões do Estado. Até julgamentos tiveram de ser transferidos de comarca porque os júris eram compostos de gente suspeita de envolvimento com facções. “Tratando-se de crime grave, com vítima inclusive decapitada, vê-se que pode ser comprometida a imparcialidade dos jurados, pois é plenamente possível que a organização criminosa exerça influência sobre eles”, decidiu um juiz, que mudou um caso de Monsenhor Tabosa para Sobral.

NA MATA - Policiamento no Amazonas: rota profícua do tráfico de drogas
NA MATA - Policiamento no Amazonas: rota profícua do tráfico de drogasBruno Kelly/.

O embate por território entre quadrilhas rivais tem feito os índices de homicídio alcançar novos patamares no Nordeste. Em Pernambuco, o confronto entre PCC e CV incendiou os morros da região metropolitana de Recife. Em uma comunidade, a Alto José do Pinho, o aviso de um toque de recolher diário, a partir das 22h, veio por WhatsApp: “A partir de hoje haverá guerra de tráfico e muita bala. Orem e se protejam”. Não era brincadeira. “A população só acreditou quando um garoto autista de 4 anos foi baleado na perna e outro, de 9, morreu com um tiro nas costas ao voltar da igreja com a mãe depois do horário permitido”, relatou um morador. Também a Amazônia atiça cada vez mais a ambição das facções. Os labirínticos rios da floresta vêm sendo amplamente utilizados para o transporte de entorpecentes vindos de países como Colômbia e Bolívia. O precário policiamento das fronteiras favorece as quadrilhas, que acabam ocupando bairros nas periferias das grandes cidades e lucrando alto com extração de madeira, caça, pesca e garimpo ilegais.

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Algumas bem-sucedidas iniciativas para recuperar o território sequestrado pelo crime ajudam a iluminar um passo a passo que não contém grandes inovações, mas, sim, ideias que, aplicadas com disciplina, colhem bons resultados. Inspirado no sempre lembrado exemplo da cidade colombiana de Medellín, no passado dominada pelo temido cartel de Pablo Escobar, o programa Usinas da Paz, do Pará, preenche a vida de crianças e adultos de favelas com dezenas de iniciativas — de prática esportiva à capacitação profissional, um caminho para o Estado se fazer presente e um desestímulo à entrada de jovens na criminalidade. Neste ano, os crimes letais caíram 75% no estado. “Estamos longe de vencer essa guerra, mas a resposta tem funcionado melhor do que a simples repressão”, diz Roberto Magno Netto, da Universidade Federal do Pará. Em outra frente, os especialistas repisam a tecla de que as diversas esferas de governo precisam se integrar, inclusive com combate à corrupção policial e planejamento.

NÃO DEU - UPP no Alemão: os bandidos acabaram levando a melhor
NÃO DEU – UPP no Alemão: os bandidos acabaram levando a melhorMarcelo Sayao/EFE

Em 2008, o Rio parecia inaugurar um novo capítulo na batalha contra as facções criminosas encasteladas em morros cujos becos e vielas elas conhecem como ninguém. Foi aí que o governo estadual, ainda na era de Sérgio Cabral, implantou as Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, trazendo uma novidade à paisagem ao erguer bases policiais permanentes que praticariam um patrulhamento comunitário. Em ato simbólico, a bandeira brasileira foi hasteada no topo do mesmo Complexo do Alemão, dando aos mais céticos alguma esperança de que a lei do estado de direito era a que valeria dali para a frente. Foi em vão, não deu em nada. Acabou não vingando diante do afã expansionista do programa, insuflado por interesses políticos, e da cooptação de uma banda dos policiais pelo crime.

ESTADO PRESENTE - Medellín, na Colômbia: a força dos projetos sociais
ESTADO PRESENTE - Medellín, na Colômbia: a força dos projetos sociaisGiongi/Shutterstock
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Após a operação da semana passada, o governo disse planejar reaver áreas de forma mais permanente, começando pela região Sudoeste, onde fica a Barra da Tijuca, conforme acertado na reunião do recém-criado Escritório Emergencial de Combate ao Crime Organizado, que reúne o Ministério da Justiça e a secretaria estadual de Segurança. “Até o final do ano, vamos apresentar um plano de retomada de territórios com foco nos negócios das facções e participação de todos os entes governamentais”, disse a VEJA o secretário Victor Santos. Que saia mesmo do papel e dure. Os moradores que passam pelo martírio diário de viver sob a mira do fuzil merecem a paz.

Com reportagem de Isabella Alonso Panho e Pedro Jordão

Publicado em VEJA de 7 de novembro de 2025, edição nº 2969

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