O Brasil está às vésperas de uma transformação silenciosa, porém profunda, na forma como o Estado enxerga, controla e tributa os imóveis do país. Com a publicação da Instrução Normativa nº 2.275/2025, a Receita Federal instituiu o Cadastro Imobiliário Brasileiro (CIB), um sistema nacional que, pela primeira vez, unificará todos os dados referentes a cada imóvel sob um único número. A partir de 2026, todo imóvel, seja ele urbano ou rural, utilizado para moradia, comércio, investimento ou aluguel, terá um código exclusivo, equivalente a um “CPF do imóvel”. Esse número acompanhará a propriedade por toda a sua existência registral, desde a matrícula inicial até eventuais transmissões futuras.
O CIB nasce como resposta a um problema histórico: o Brasil nunca teve uma base integrada que reunisse os dados territoriais e fiscais de forma consistente. Hoje, uma mesma propriedade pode ter três, quatro ou até cinco versões oficiais. A prefeitura registra um valor no IPTU, o cartório mantém outro, o INCRA trabalha com uma informação distinta, a Receita Federal enxerga outra e o mercado pratica valores muitas vezes muito superiores aos declarados. O resultado é um terreno fértil para inconsistências, subavaliação, sonegação, disputas judiciais, erros cadastrais e, principalmente, uma enorme dificuldade do poder público em entender o patrimônio imobiliário do país. O CIB surge justamente para reduzir esse abismo.
Oficialmente, a Receita Federal afirma que o objetivo é promover transparência, segurança jurídica e organização cadastral. Porém, o efeito prático vai muito além disso. A criação de um número único, associada à integração automática dos cartórios ao sistema nacional, permitirá ao governo acessar em tempo real o valor de mercado das propriedades e isso muda completamente a dinâmica dos impostos que incidem sobre imóveis. Não é necessário criar um novo tributo, aumentar a alíquota do IPTU, reajustar o ITBI ou mexer no ITR. Basta que o valor cadastrado seja atualizado. E é justamente isso que o CIB fará, de forma contínua, automática e permanente.
Muitas pessoas têm a sensação de que a mudança é discreta, quase imperceptível, mas seus efeitos serão amplos. Uma simples escritura registrada, um financiamento aprovado, uma retificação de área, uma regularização tardia ou até o registro de um contrato de locação passará a alimentar a base de dados do CIB. Em cidades onde os cadastros estão congelados há décadas, essa nova fotografia dos imóveis deve provocar revisões significativas no IPTU. Nos negócios imobiliários, o ITBI tende a ficar mais alto, já que a subavaliação será facilmente identificada. No meio rural, informações que antes passavam despercebidas, como inconsistências na extensão da área ou no uso declarado, poderão resultar em aumento do ITR.
Os proprietários são, naturalmente, os primeiros na linha de impacto. Quem mantém imóveis subavaliados, ampliados sem averbação ou declarados com valores artificiais perceberá que a margem de manobra desaparece. A Receita Federal cruzará dados de cartórios, concessionárias de energia e água, financiamentos, condomínios, declarações de Imposto de Renda e, agora, do próprio CIB. Se a venda foi feita por um valor e a declaração mostra outro, o sistema identifica. Se o imóvel tem uma metragem na matrícula e outra no IPTU, o sistema aponta. Se o proprietário recebe aluguel e não declara, o CIB detecta, porque o cruzamento entre contrato registrado e Carnê-Leão será automático.
Já os locadores e inquilinos também sentirão mudanças concretas. Quem aluga imóveis informalmente verá a fiscalização mudar de patamar. A partir de 2026, o CIB passa a registrar não apenas a propriedade, mas também a destinação do imóvel, e os contratos registrados em cartório alimentarão essa base nacional. O locador que omite rendimentos será facilmente identificado. O inquilino que não declara o aluguel pago também será alcançado, já que o cruzamento entre quem paga e quem recebe será feito pela própria Receita. A reforma tributária ainda prevê novas regras para quem possui múltiplos imóveis alugados ou rendimentos anuais significativos, o que pode tornar a locação mais onerosa. É um conjunto de pequenas mudanças que, somadas, alteram o cenário inteiro.
Na prática, o CIB não cria um problema. Ele apenas revela os que sempre existiram. Imóveis sem matrícula atualizada, áreas que nunca foram averbadas, contratos antigos guardados na gaveta, construções sem regularização, valores defasados no IPTU, tudo isso, que até hoje dependia de fiscalização manual, passará a ser exposto automaticamente pela integração dos sistemas. Para vender, financiar ou regularizar, será preciso que o imóvel esteja em conformidade. Para declarar corretamente, o contribuinte terá que ajustar seus dados. E para quem ignorar essas mudanças, o custo tende a ser alto.
Nesse sentido, o papel do advogado especialista em direito imobiliário se torna ainda mais relevante. Diante da implementação do CIB, esse profissional deixa de atuar apenas na resolução de problemas e passa a ter uma função estratégica e preventiva. Ele é capaz de realizar auditorias completas dos imóveis, revisar matrículas, confrontar dados de IPTU, verificar construções não averbadas, identificar pendências que podem gerar aumento tributário e orientar a regularização antes que o sistema aponte divergências. No campo tributário, o advogado, muitas vezes trabalhando em conjunto com um tributarista, reduz o risco de autuações, auxilia na correção de declarações, orienta sobre as novas obrigações do IBS e da CBS para grandes locadores e evita que o proprietário seja surpreendido por cobranças inesperadas.
Além disso, o advogado passa a ter papel essencial na elaboração e revisão de contratos. Com o CIB, documentos inconsistentes, valores informais, termos genéricos e lacunas que antes poderiam passar despercebidos serão facilmente identificados pela Receita. Ajustar esses contratos, registrá-los corretamente e alinhar suas informações com os dados oficiais passa a ser indispensável para evitar questionamentos tributários e problemas futuros. E, quando o contribuinte discordar do valor atribuído ao imóvel ou for alvo de uma cobrança injusta, será esse profissional quem cuidará das medidas legais cabíveis.
O fato é que o Cadastro Imobiliário Brasileiro inaugura uma nova fase na relação entre o cidadão e seu patrimônio. Pela primeira vez, o Estado terá uma visão completa, integrada e em tempo real do valor, da origem e da movimentação de cada imóvel do país. Para quem sempre manteve seus dados em ordem, a mudança traz segurança e confiabilidade. Para quem se acomodou com cadastros desatualizados, a conta pode ser alta. Antecipar-se será mais barato do que corrigir depois. E, diante da nova realidade, deixar para amanhã o que precisa ser regularizado hoje não é apenas arriscado, é financeiramente perigoso.