O Brasil tem um talento peculiar: transformar qualquer conflito, dúvida, expectativa, incômodo ou esperança em processo judicial. Há países que resolvem problemas com boas regras, boas instituições, boas negociações. Aqui, o default nacional é outro: “entra com uma ação!”. Se alguém tropeça numa calçada, processa o Município; se o avião atrasa, processa a companhia aérea; se o governo tenta regular algo, alguém processa o governo; e se o governo não regula, processa justamente por isso; há ainda o “processo contra a decisão do processo”. É o loop perfeito da nossa engenharia institucional: qualquer caminho leva ao Judiciário, e todos parecem aceitáveis.
Quando o Estado regula mal, o Judiciário intervém “para interpretar”. Quando regula demais, intervém “para limitar”. Quando não regula nada, intervém porque “alguém precisa fazer alguma coisa”.
E assim vamos vivendo: uma sociedade que terceiriza ao juiz a tarefa de coordenar o que as instituições e as pessoas não conseguem, não querem ou simplesmente esqueceram de fazer. O Judiciário virou a sala do síndico de um grande condomínio: para lá vão conflitos sobre a infiltração do apartamento, a medicação que o plano de saúde não cobre, o tributo cuja base de cálculo ninguém mais entende, a política pública que desandou, o reajuste do pedágio, o algoritmo do aplicativo, o contrato societário em crise e a disputa eleitoral que deveria ser resolvida no campo político. Na mesa do “síndico”, convivem o barulho da furadeira, o orçamento da rodovia e a regulação da inteligência artificial.
A explicação para isso raramente é “cultural” (mesmo assumindo que tenhamos uma boa definição do que isso signifique) — embora seja tentador dizer que “o brasileiro gosta de brigar na Justiça”. Seria tão simples! Mas a realidade é mais cruel: o brasileiro litiga porque é racional litigar. É o único caminho conhecido, gratuito (ou quase), socialmente validado e institucionalmente recompensado (modelos de análise econômica do processo abundam evidenciando isso). Resolver as coisas fora do tribunal, ao estilo preconizado por Ronald Coase? Em tese, bonito. Na prática, trata-se quase de um esporte radical.
E aí, a insegurança jurídica é a mais eficiente máquina de criar processos. Regras que mudam por “entendimento”, contratos que viram peças de ficção científica, normas que só existem plenamente depois de cinco decisões colegiadas — e olhe lá. Não há planejamento estratégico ou análise econômica que sobreviva a esse ecossistema, em que cada juiz pode ter um projeto regulatório próprio, ainda que temporário. E haja provisões trabalhistas, tributárias e consumeristas para colocar no orçamento…
O efeito econômico é conhecido: custos de transação altos, investimentos baixos, produtividade deprimida, e um país que consegue tributar a atividade produtiva não apenas com impostos formais, mas com incerteza. Judicializar é um tributo invisível — uma TUSD-J (Tarifa de Uso do Sistema de Decisões Judiciais). Não está na Lei de Diretrizes Orçamentárias, mas impacta cada centavo da atividade econômica.
E como se tudo isso não bastasse, há outro ingrediente importante nessa receita: temos advogados para abastecer a judicialização por décadas. Não é exagero: é um setor industrial. Somos o único país onde o número de faculdades de Direito parece competir com o número de municípios.
Mas é aqui que entra a ironia: muita gente lê esse fenômeno como causa do problema. Na verdade, é consequência. O país forma advogados litigantes porque litigar é o que funciona, os incentivos estão todos aí. Não por malícia ou vocação beligerante, mas porque o ambiente institucional transformou o litígio em recurso econômico. É quase uma commodity. A lógica é simples: num sistema instável, prevenir vale pouco; litigar vale muito. E assim surgem carreiras inteiras dedicadas não à solução de conflitos, mas à produção contínua de demanda judicial — um mercado perfeitamente adaptado à ecologia institucional que criamos.
O problema é que cada decisão judicial reescreve um pedacinho da ordem econômica. Uma liminar muda preços; um agravo altera incentivos; uma sentença mexe na dinâmica de um setor inteiro. A cada dia, o Judiciário faz mais política pública do que o Poder Executivo, mais regulação que as agências e mais revisão normativa que o Legislativo. Não é um plano de poder — é um efeito colateral da paralisia institucional. E assim, ativa-se a máquina permanente da produção de insegurança jurídica.
É claro que há quem ache tudo isso absolutamente normal. Afinal, se o Judiciário resolve, então está funcionando. Mas resolver caso a caso — com a melhor das intenções — não significa resolver o sistema. Pelo contrário: cada solução individual cria um problema coletivo. Quando um contrato é revisado para proteger uma parte específica, pode-se ter protegido uma pessoa, mas destruiu-se um pedaço da previsibilidade de todos os demais contratos. Quando uma política pública é reconfigurada por decisão judicial, ajusta-se um caso concreto e desorganiza-se o orçamento todo. Para salvar a árvore, destroem-se floretas inteiras.
E assim o país vai criando incentivos cada vez piores, reforçando o que já sabemos: somos uma economia que não sabe regular, mas sabe contestar.
A solução, obviamente, não é “mudar a cultura”. Cultura não desaparece por decreto, workshop ou campanha educativa (nem decisão judicial). A solução é a mais óbvia e a mais negligenciada: regular melhor. Regular com menos ambiguidade, menos voluntarismo, menos criatividade normativa e mais clareza. E, sobretudo, com incentivos alinhados: mecanismos que premiem a composição e desencorajem o uso estratégico do litígio. E uma vez (bem) regulado, a regulação deve ser mantida. Nada de o juiz “interpretá-la” de maneira “criativa”.
A pergunta talvez não seja: “por que judicializamos tanto?”. A pergunta, infelizmente, é: como ainda não judicializamos mais?
Luciana Yeung é Professora Associada I e Coordenadora do Núcleo de Análise Econômica do Direito do Insper. Membro-fundadora e ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), Diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ALACDE). Pesquisadora-visitante no Law and Economics Foundation na Universidade de St Gällen (Suíça) e no Institute of Law and Economics, da Universidade de Hamburgo (Alemanha). Autora de “O Judiciário Brasileiro – uma análise empírica e econômica”, “Curso de Análise Econômica do Direito” (juntamente com Bradson Camelo) e “Análise Econômica do Direito: Temas Contemporâneos” (coord.), além de dezenas de outras publicações, todos na área do Direito & Economia.