Toda metáfora tem cunho didático. Em Asterix e o Domínio dos Deuses, clássico de 1971, um condomínio de luxo anunciado pelos romanos — por Tutatis! — é crítica direta à padronização do consumo, especialmente aquela alimentada pelos americanos. Os gauleses chiaram, reclamaram, e dá-lhe poção mágica para conter o inimigo. Corta para 2025, como numa revista em quadrinhos a informar, no balão seguinte, “tantos anos depois…”. O adversário, por assim dizer, agora são os chineses — e, mais particularmente, a varejista de moda on-line Shein.
Na semana passada, a empresa inaugurou seu primeiro estabelecimento físico do mundo em Paris, justamente em Paris, e dentro de uma entidade para lá de centenária, a BHV, uma loja de departamentos cuja sede está pousada desde o século XIX na Rue de Rivoli, em frente ao prédio da prefeitura — daí o nome, as iniciais de Bazar de l’Hôtel de Ville. Para muita gente soou como afronta — e não por acaso houve protestos com faixas e cartazes, não muito diferente da grita contra o McDonald’s, que brotou na terra de Paul Bocuse e cia. pela primeira vez em 1972, porque era inconcebível que um cidadão da França comesse com as mãos.
O McDonald’s vingou, e há hoje na França 1 500 restaurantes da cadeia de fast food. É possível que, passado o susto inicial com o desembarque da Shein, ela também prospere, em um mundo globalizado, apesar de muitos países pretenderem ser aldeias cercadas por muros tarifários. Para começo de conversa, é crucial saber que a companhia de fast fashion da China cresce com vigor — o faturamento de 600 milhões de dólares em 2016 chegou a 38 bilhões de dólares em 2024. É tração que não deve impedir a expansão na França, mas que não freará também a avalanche de confusões.
Há agora mesmo, em países da União Europeia, denúncias de venda inapropriada de produtos como as bonecas sexuais de aparência infantil. “A luta contra a exploração infantil é inegociável para a Shein”, disse o CEO Donald Tang, tentando conter o desastre, inevitável. Não demorou, ao anúncio da inauguração na BHV, para brotarem cartazes com frases como “protejam as crianças, não a Shein”. A Federação Francesa do Prêt-à-Porter Feminino chamou o dia da abertura de “uma jornada sombria para a moda francesa”. O banco estatal Caisse des Dépôts rompeu apoio financeiro ao grupo que abriga a loja. Nos Estados Unidos, recentemente, deu-se a investigação de suposto uso, na região de Xinjiang, de trabalho análogo à escravidão, mediante salários aviltantes. Em 2022, um endereço temporário dentro de um shopping center de São Paulo virou caso de polícia, com imensas filas e numerosas brigas pelos produtos bem chinfrins.
Pode-se, é claro, atribuir a simultaneidade do sucesso e do fracasso de público aos preços muito baratos — eles também alvo de severos julgamentos. Com um modelo baseado em velocidade, volume e preços irrisórios, a marca lança até 6 000 novos produtos por dia. É o retrato da era digital: instantânea, descartável e viciante. No Brasil, desde o ano passado, intensificou-se a ofensiva fiscal contra plataformas como a Shein. A chamada “taxa das blusinhas” passou a cobrar 17% de imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) e 60% de imposto de importação sobre compras internacionais acima de 50 dólares.

A resposta brasileira, via impostos, dá as mãos a um sentimento internacional. Contudo, parece não haver solução de recuo que não seja a de taxação, medida que sempre produzirá muito barulho por nada. “É irônico perceber que, apesar das críticas e protestos, havia uma fila enorme em Paris”, diz Silvia Scigliano, do Istituto Europeo di Design. “A conta não fecha, porque alguém paga pelos preços baixos, sejam os trabalhadores em linhas de montagem duvidosas, seja o meio ambiente, ferido.” Em tempo de preocupações com a sustentabilidade, em plena realização da COP30, em Belém, o desenho da Shein parece não merecer aplausos.
Há, no ar, um terrível dilema da sociedade — a busca da simplicidade, o adeus ao luxo pelo luxo, mas o anseio por comprar peças de preços lá no chão, ainda que, para oferecê-los, a cadeia de manufatura seja um tanto torta e desrespeitosa. A Shein na França é, enfim, a um só tempo, o início de um novo tempo e o desfecho de um jogo de relações comerciais em que a China vence ao pôr nas prateleiras, especialmente em sites de compra, produtos que ganham pelo preço — apesar das dúvidas, apesar da história nebulosa.
Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2025, edição nº 2970
