Mais uma vez, o Brasil se vê diante de uma crise silenciosa, porém profunda: a erosão da privacidade em meio à expansão tecnológica, às redes sociais e à economia de dados. Nunca estivemos tão expostos, tão monitorados e tão vulneráveis, e mesmo assim seguimos sem uma legislação específica capaz de proteger efetivamente o indivíduo contra violações que ocorrem em velocidade digital. Enquanto países como os Estados Unidos, ainda no final do século XIX, já discutiam os limites da exposição pública – como fizeram Warren e Louis Brandeis em 1890 ao denunciar o avanço do jornalismo sensacionalista e das primeiras câmeras fotográficas –, o Brasil permanece preso a uma estrutura jurídica fragmentada que trata a privacidade como um apêndice, quando ela deveria ser núcleo essencial da democracia. A ausência de um delito autônomo permite que empresas, plataformas digitais, governos e até particulares invadam a vida alheia sem que o ordenamento ofereça instrumentos proporcionais para reparação e prevenção.
Essa insuficiência normativa não é mero detalhe acadêmico: cria um ambiente de insegurança jurídica que autoriza abusos, legitima invasões e transforma cidadãos em mercadorias. Em dados extraídos no Livro de Thomas Law e Lucas Fernandes da Costa “Compliance e Nova Revolução Tecnológico”, cita o caso Roberson, de 1902, por exemplo, já demonstrava que o uso não autorizado da imagem para fins comerciais poderia devastar a dignidade de uma pessoa. Pavesich, anos depois, ampliou esse entendimento ao reconhecer que a privacidade é fundamento da liberdade individual. O curioso é constatar que, mais de um século após esses precedentes, o Brasil ainda não internalizou de forma robusta a compreensão de que a vida privada é patrimônio inegociável. Vivemos, assim, uma espécie de anacronismo jurídico: tecnologias de 2025, mas proteção legal de 1988.
A crise torna-se ainda mais visível quando observamos o cotidiano das redes sociais, a difusão de “deepfakes”, o uso político de dados, a vigilância digital empresarial e o comércio subterrâneo de informações pessoais. Tudo isso ocorre sem que o Estado tenha estabelecido parâmetros claros de responsabilidade, tipos específicos de violação ou limites objetivos para proteção da identidade e da imagem. A LGPD representa um avanço, mas a própria lei reconhece seus limites, pois regula dados, não a privacidade em sua totalidade. Trata-se de norma necessária, mas insuficiente, incapaz de abranger a complexidade das novas formas de violação que surgem diariamente.
O problema, porém, não está apenas nas lacunas legais, mas na forma como a ausência de uma lei específica aprofunda desigualdades e amplia o poder dos mais fortes sobre os mais vulneráveis. Sem uma tipificação clara, a privacidade continua sendo interpretada caso a caso, como se fosse um luxo jurídico, e não um direito fundamental. E, assim como Hannah Arendt alertou em 1971 que a mentira pode se transformar em instrumento estrutural da política moderna, hoje podemos afirmar que a invasão da privacidade tornou-se uma prática estruturante do modelo econômico contemporâneo. A diferença é que, se antes a manipulação estatal criava realidades paralelas, agora são algoritmos, plataformas e mecanismos digitais que reconstroem identidades, fabricam versões distorcidas e desgastam a confiança pública.
A pergunta que se impõe é semelhante à que Arendt fez sobre a desobediência civil: quando a invasão da privacidade ultrapassa o limite do tolerável? E, sobretudo, quando o Estado falha em proteger o cidadão? No Brasil, essa falha é evidente. O indivíduo está exposto, permanentemente catalogado, com sua imagem circulando sem controle, seus dados vendidos, sua vida devassada. E não há, em nosso sistema jurídico, uma lei que defina objetivamente quando isso constitui delito, tampouco que estabeleça sanções proporcionais ou instrumentos preventivos eficazes. Os quatro ilícitos de privacidade estruturados por William Prosser em 1960 – intrusão, divulgação de fatos privados, falsa luz e apropriação da identidade – ainda não foram incorporados de forma sistemática em nossa legislação. A ausência dessa estrutura impede que o país acompanhe o desenvolvimento tecnológico e garante a continuidade de violações que se naturalizam no cotidiano.
Assim, a democracia brasileira enfrenta um desafio semelhante ao descrito por Arendt: a erosão de um elemento essencial da vida pública. No caso dela, era a verdade factual; no nosso, é a privacidade. Sem privacidade, não há autonomia; sem autonomia, não há liberdade; sem liberdade, não existe espaço público autêntico. Por isso, a criação de uma lei de delito de privacidade no Brasil não é apenas uma demanda jurídica, mas uma condição necessária para a preservação da própria cidadania. É o passo indispensável para impedir que a vida íntima seja reduzida a produto, que a identidade seja manipulada sem limites e que o indivíduo seja permanentemente observado. Tal como na metáfora da roda gigante, a política e a tecnologia continuarão girando, ora com avanços, ora com retrocessos. Mas a proteção da privacidade — enquanto direito fundamental — precisa permanecer no centro, para que o Brasil não continue ascendendo e descendo ao sabor das forças que moldam o poder contemporâneo, sem qualquer equilíbrio.
Wellison Muchiutti Hernandes é advogado e professor universitário. Mestre em Direito Desenvolvimento e Justiça, pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), pós-graduado em Direito Público com Ênfase em Gestão Pública pelo Complexo Damasio de Jesus (2015/2017), em Direito Penal pela Faculdade Metropolitana (2019).