A escritora Violaine Bérot vive há mais de 20 anos em uma rústica cabana nas montanhas dos Pireneus franceses. Durante um tempo, criou um rebanho de cabras “alegres e resistentes” que podiam se tornar “caprichosas e infernais”. Agora, dedica-se integralmente à outra criação: a literária.
Pois o cenário em que se passa seu primeiro livro publicado no Brasil, Feito Bestas, editado pela Mundaréu com a tradução de Letícia Mei, parece estar situado nas redondezas do seu austero lar, um lugar aparentemente ermo e tranquilo. Mas não se engane: onde o ser humano pisa e enfrenta a (sua) natureza, tensões e conflitos surgirão.

É em clima de suspense que começa o romance. Cidadãos de um vilarejo são convocados a prestar depoimento à polícia porque algo de muito estranho aconteceu. Uma criança foi encontrada em uma gruta nas vizinhanças.
Logo se planta (e se debate) a ideia de que ela está vivendo sob os cuidados do Urso, um rapaz peculiar no físico e na alma. É forte como o bicho que lhe empresta o nome, tem o dom de curar animais e se mostra avesso ao contato humano – “diferente”, “autista”, “neurodivergente”, a depender do rótulo que desejarmos dar.
Como é que uma menina frágil pode ser criada assim, pelas mãos de um bruto escondido em um buraco distante da civilização? É a partir dessa pergunta que os personagens das cercanias desfilarão suas memórias, impressões, preconceitos e simpatias, em um ritmo e estilo que nos fazem devorar as páginas.
A cada depoimento prestado intercala-se uma intervenção das fadas. Sim, fadas… Pois a autora nos coloca em contato com os instintos e também com as crenças que a nossa espécie herdou – tanto aqueles que nos fazem ferir uns aos outros como os que nos protegem da nossa natureza selvagem.
Com a palavra, Violaine Bérot.

O que você aprendeu convivendo com a natureza e os animais que os seres humanos jamais poderiam lhe ensinar?
A natureza e os animais me trouxeram de volta à realidade! Eu achava que estava muito acima deles como ser humano. Mas, quando você vive por mais de 20 anos em condições extremas nas montanhas e com o mínimo de conforto, você entende que é muito pequeno diante da natureza, que não controla nada, que cabe ao nosso corpo e à nossa mente se adaptarem a ela.
A natureza é dura (o clima, as encostas etc.) e oferece tanto presentes inesperados quanto truques sujos. O mesmo acontece com os animais. Eu tinha um rebanho de cabras, uma raça antiga e muito rústica. Eram verdadeiras guerreiras, e eu as adorava: eram valentes, alegres, resilientes, resistentes, magníficas. Mas, em questão de segundos, podiam se tornar caprichosas, infernais, teimosas… A natureza e os bichos me ensinaram que nada está totalmente conquistado.
Em que medida essa imersão na natureza influencia sua escrita?
Não creio que essa imersão na natureza tenha influenciado minha escrita. Eu já escrevia antes de escolher esse estilo de vida e não acredito que ele tenha mudado minha relação com o texto. A natureza e a minha experiência com os animais só trouxeram novos temas para meus livros, pois cada experiência que tenho pode um dia servir de base para um romance.
Feito Bestas também aborda a visão da sociedade sobre pessoas “diferentes” e aquelas comumente chamadas de “deficientes”. Ainda somos incapazes de reconhecer e respeitar as diferenças humanas?
Tendemos a esconder e a tornar invisíveis todos aqueles que se desviam da norma. Presumimos que aqueles que são diferentes não podem contribuir em nada para a sociedade, que não passam de um fardo. Não lhes deixamos espaço social. Isso vale para aqueles com problemas de saúde mental, para os idosos, para os presos…
Ao mesmo tempo, dar a eles um lugar na sociedade não apenas aumentaria seu próprio valor, mas também seria benéfico para a própria comunidade. No livro, o personagem principal tem o dom de cuidar de animais. Por que não reconhecer essa capacidade que outros humanos não têm?
Pensando nas suas fadas… A imaginação ainda é um escudo ou um remédio contra todas as formas de abuso e violência?
Eu não falaria de imaginação, mas sim de crença. Acho que precisamos acreditar em algo para suportar o insuportável. A crença pode assumir várias formas: religiosa, espiritual, pessoal. Em Feito Bestas, a crença assume a forma de fadas cuidando de certos seres humanos. Quando a nossa vida real se torna muito brutal, o irreal pode ajudar a nos manter em pé.