Por séculos, o período medieval foi visto como uma época de altíssima repressão sexual, na qual os seres humanos até podiam pensar “naquilo” secretamente — mas não celebrar o desejo em público. Estendendo-se por quase um milênio, na Europa dos séculos V ao XV, a Idade Média foi marcada por rígidos códigos feudais e pelo domínio dos dogmas cristãos, o que resultava de fato num moralismo exacerbado em relação a sexo, casamento e família. A arte, no entanto, mostra uma história mais complexa que esse lugar-comum: temas como gênero e sexualidade faziam parte do cotidiano da população daquela era, sim. “O desejo e as artes visuais estavam profundamente entrelaçados”, explica o curador Max Hollein no catálogo de Spectrum of Desire (em português, Espectro do Desejo), mostra que entra em cartaz na sexta-feira 17 no museu Metropolitan de Nova York.
Com cerca de cinquenta belas relíquias — incluindo esculturas, manuscritos e pinturas —, a exposição se debruça sobre um momento em que a arte servia quase majoritariamente a fins religiosos, mas o sexo e o erotismo davam um jeitinho de se embrenhar nas entrelinhas. Na época, ao mesmo tempo que havia repressão com prisões e mortes por adultério ou sodomia, ganhava terreno também uma experimentação surpreendente, em que ideias sobre o poder do erotismo e a expressão de gênero estavam não raro em pauta.

É claro que isso ocorreu de maneira cifrada ou alegórica. Foi para exprimir certo empoderamento feminino incipiente que artistas do período retrataram amplamente uma narrativa lendária envolvendo o filósofo Aristóteles e a sedutora Fílis. Na história original, o sábio grego recomenda que seu pupilo Alexandre, o Grande, se afaste da mulher e se concentre em suas funções como líder do império macedônio. Para se vingar, Fílis seduz Aristóteles e exige como prova de amor que ele fique de quatro no chão para que ela cavalgue em suas costas — e o chicoteie.
Apesar da aparente liberdade na arte, a realidade era perigosa: centenas de pessoas foram mortas pelas autoridades por crimes ligados a atos sexuais, mas pouco se sabe sobre elas. A alemã Katherina Hetzeldorfer é das poucas cujo destino se conhece: foi afogada em 1477, acusada de fazer sexo com mulheres e “se portar como homem”. Em paralelo a isso, as artes pintavam um mundo onde até a religião podia ser vertida em erotismo. “Alguns dos maiores pensadores cristãos do período discorreram sobre os beijos profundos que buscavam no Senhor. Crentes oravam para poder deitar-se com Jesus. Secular e sagrado nunca foram noções distintas na Idade Média”, atesta o catálogo da exposição.

No acervo, há uma pintura de São Sebastião, que virou uma espécie de “ícone queer” com suas representações sugestivas. O biógrafo Giorgio Vasari (1511-1574) relata que uma imagem do santo teve de ser removida de uma igreja porque estava fazendo com que as mulheres “pecassem ao vê-la”. Figuras de outros santos ou anjos que rompem com a imagem binária de masculino e feminino e de casais do mesmo sexo também eram comuns. Os desejos medievais eram reprimidos, mas deixaram testemunhos eloquentes.
Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2025, edição nº 2965