O advogado Luiz Antonio Scavone Júnior, professor-doutor em Direito e autor de obras de referência como “Direito Imobiliário”, publicou em suas redes sociais um vídeo inflamado dizendo que o STJ “acabou de destruir a Lei do Distrato” ao permitir que o Código de Defesa do Consumidor prevaleça sobre a norma específica. Para Scavone, a lei de 2018 foi criada justamente para regular a cláusula penal compensatória e oferecer segurança jurídica nas relações contratuais, evitando interpretações subjetivas. Na batalha entre o CDC e a Lei do Distrato, o jurista acredita que deva prevalecer a lei, por ela existir para dar previsibilidade e afastar o que ele chama de “ativismo e interpretação criativa” pelos julgadores.
A discussão levantada pelo advogado toca em um ponto central da história do mercado imobiliário brasileiro. A compra de imóveis na planta sempre foi um dos caminhos mais comuns para o acesso à casa própria no país, especialmente pela facilidade de pagamento e pelos valores mais baixos antes da entrega das chaves. Mas, durante anos, esse modelo foi marcado por insegurança jurídica, especialmente quando o comprador desistia do negócio.
Antes da criação da Lei do Distrato, sancionada em 2018, não havia regras claras sobre como proceder nesses casos. Cada decisão judicial acabava dependendo do entendimento do magistrado, o que gerava distorções e incertezas. Em algumas situações, os consumidores conseguiam reaver quase todo o valor pago. Em outras, enfrentavam retenções altíssimas, sem qualquer padronização. As construtoras, por sua vez, alegavam que os distratos desequilibravam o fluxo financeiro das obras e ameaçavam a viabilidade dos empreendimentos.
A Lei do Distrato surgiu, então, como um marco regulatório. Ela trouxe parâmetros objetivos para a rescisão de contratos de imóveis na planta, estabelecendo percentuais máximos de retenção, de até 25% em contratos comuns e até 50% nos casos sob regime de patrimônio de afetação, e prazos definidos para devolução dos valores. Também passou a exigir o quadro-resumo nos contratos, garantindo maior transparência para o comprador.
A medida foi celebrada como um avanço, pois conferiu previsibilidade ao mercado e reduziu o número de disputas judiciais. Para os consumidores, representou clareza sobre os riscos e custos de uma desistência. Para as incorporadoras, significou segurança para planejar financeiramente seus empreendimentos, mesmo diante de eventuais rescisões.
Ainda assim, o tema nunca deixou de gerar polêmica, pois parte dos julgadores passou a aplicar a lei de forma literal, admitindo retenções sucessivas que, somadas, reduziam drasticamente o valor a ser restituído ao comprador. Na prática, a retenção de valores acabava superando, em alguns casos, o limite de 25%. Outra parte dos tribunais, porém, recorria ao Código de Defesa do Consumidor para limitar essas deduções e proteger o adquirente.
Em setembro de 2025, o Superior Tribunal de Justiça buscou pacificar a questão. A Terceira Turma decidiu que, em contratos imobiliários com características de relação de consumo, as normas do CDC devem prevalecer sobre a Lei do Distrato. Na prática, o tribunal fixou um teto global de 25% para as retenções, somando todos os descontos possíveis.
Com essa decisão, o STJ encerrou uma divergência que durava anos e consolidou um novo parâmetro de interpretação. A Lei do Distrato permanece válida, mas deve ser lida em harmonia com o CDC, dentro de uma lógica protetiva. O entendimento oferece maior clareza aos consumidores e força as incorporadoras a reverem práticas contratuais que, na prática, vinham onerando excessivamente quem desistia da compra.
Ainda assim, a reação do setor foi imediata. Juristas e empresários apontam que o “ativismo judicial” pode desorganizar um mercado que depende de segurança jurídica para funcionar. As construtoras defendem que, ao reduzir o poder de retenção, o STJ interfere no equilíbrio econômico dos projetos e desestimula novos lançamentos, especialmente no segmento de médio e alto padrão.
Para os compradores, por outro lado, a decisão representa uma vitória do princípio da boa-fé e um freio a práticas contratuais consideradas abusivas. A limitação global de 25% evita que o consumidor tenha prejuízo desproporcional e garante uma margem razoável de proteção, ainda que implique algum impacto para as empresas.
No meio desse embate, a Lei do Distrato volta ao centro do debate, agora reinterpretada à luz de novos tempos e sob o olhar atento de um setor que movimenta bilhões e influencia diretamente a economia brasileira.