Quando assaltantes subjugam os presentes em uma agência bancária, um esquadrão logo circunda o prédio, mas pouco faz para conter a situação. Afinal, é o roteiro de mais uma versão da franquia cômica Corra que a Polícia Vem Aí! (The Naked Gun, Estados Unidos, 2025), já em cartaz no país, e a cena é armada para um só herói brilhar: o policial Frank Debrin Jr., vivido pelo irlandês Liam Neeson. Altivo, com o timbre grave do ator que se forjou em produções de prestígio, ele aniquila os bandidos. Mas a virilidade vem temperada com absurdo: Neeson surge à vontade sob os trajes de uma garotinha colegial, com direito a calcinha com estampa de morangos. Aos 73 anos, o ator chega assim ao apogeu de seu mergulho no cinema pastelão, completando uma das conversões mais inusitadas na carreira de um astro de Hollywood nos últimos anos.

Neeson reforça — com louvor — o clube dos atores que, após alcançar respeitabilidade e aprovação da crítica, despiram-se de pudores para abraçar o cinemão de ação e a comédia. Nascido na Irlanda do Norte, Neeson foi descoberto em 1980 pelo conceituado cineasta inglês John Boorman e se tornou grife nos anos 1990, a bordo do oscarizado A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg. A virada para a ação ocorreu em 2008, quando Busca Implacável foi sucesso de bilheteria e o tornou indissociável do estilo “bate e arrebenta”. Daí em diante, estrelou mais de vinte filmes do gênero, poucos dos quais se salvam.
Ao seguir nessa trilha, Neeson repete uma história vivida por outros gigantes da atuação no passado. É célebre a guinada dada por Leslie Nielsen quando, aos 54 anos de idade e após décadas de filmes dramáticos aclamados, o ator se tornou enfim um rosto conhecido para além da comunidade cinéfila com o sucesso Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu! (1980). Não parou mais de se entregar a papéis popularescos — inclusive como protagonista da trilogia Corra que a Polícia Vem Aí! original. Há um sabor de passagem de bastão: o abilolado personagem de Nielsen nos filmes produzidos entre 1988 e 1994 é, curiosamente, pai do policial vivido por Neeson no quarto derivado da franquia, lançado mais de trinta anos depois.

As razões que levam astros com uma reputação honorável a promover essa virada radical rumo ao cinema profano são várias, do desejo de “relaxar” a imagem à compreensível necessidade humana de pagar os boletos. No caso do grande Michael Caine, ganhador do Oscar por Hannah e Suas Irmãs (1987) e Regras da Vida (2000), sempre houve uma tentativa de se equilibrar entre esses dois mundos. O mesmo veterano capaz de protagonizar produções densas de Christopher Nolan como Interestelar também se lançou à bagaceira saga de humor Austin Powers — e daí para baixo.
Neeson tem um motivo pessoal trágico para se afiliar à tendência. “Fico um pouco constrangido”, confessou ele em 2014 sobre o volume de trabalho duvidoso, “mas não quero ficar parado remoendo minha tristeza”, afirmou. A causa foi a morte da esposa, Natasha Richardson, após um acidente de esqui em 2009. Desde então, ele mergulhou nos blockbusters de ação. Agora, ao se render à comédia besteirol, eis que a vida lhe sorriu: ele conheceu e se apaixonou no set por ninguém menos que Pamela Anderson, com quem exibe química intensa em cena. O astro que virou comédia — e isso é ótimo para todo mundo.
Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2025, edição nº 2957