Algumas culturas no mundo acreditam existir uma espécie de entidade maligna na água, crença popular comum em países com históricos antigos de navegação — e, consequentemente, naufrágios — e em pontos da Ásia, onde tsunamis deixaram rastros de destruição. Essa relação distinta com a água, que também é fonte de vida, foi uma das primeiras inspirações do diretor sul-coreano Kim Byung Woo na criação do filme A Grande Inundação, produção da Netflix que lidera o ranking de filmes mais vistos na plataforma neste fim de ano. Woo queria dar à água uma característica humana, fazendo com que suas grandes ondas fossem representativas de nossas emoções. Difícil? Sim, isso mesmo. A viagem existencial do diretor se reflete na produção que vem levantando teorias e análises na internet. Confira nos tópicos a seguir explicações sobre a trama e seu final.
O texto a seguir contém spoilers do filme A Grande Inundação:
Dilúvio bíblico e a Arca de Noé

A trama do filme é aparentemente simples: uma cientista, An-na, interpretada por Kim Da-mi, e seu filho precisam ser resgatados de um prédio quando uma chuva descomunal seguida de tsunamis, catástrofe causada por um meteoro que atingiu o mar, prometem acabar com a vida na Terra. An-na é especialista em inteligência artificial e tenta recriar, em humanos sintéticos, as emoções de pessoas reais. Juntando isso à ideia da tal entidade maligna da água, ele rapidamente pensou no dilúvio bíblico e na história da Arca de Noé. Assim, An-na e sua equipe seriam como o personagem da Bíblia cristã, fugindo do planeta esperando pela chance de voltar à terra firme.
Inudanção real ou simulação digital

A grande virada do filme acontece por volta da metade, quando An-na é separada de seu filho — o qual, na verdade, era uma criança sintética. A aeronave que a leva ao espaço é atingida por meteoritos e, gravemente ferida, An-na sugere um experimento com ela de cobaia. Trata-se de uma simulação em looping, na qual uma mãe deve encontrar o filho perdido em meio ao mesmo cenário apocalíptico pelo qual ela acabara de passar. Enquanto experimenta todas as emoções desse percurso, a máquina de IA é treinada. Sempre que ela morre no processo, An-na acorda novamente e retoma a busca pelo garoto perdido em meio ao dilúvio. Sendo assim, a primeira inundação e separação da criança de fato aconteceram — já as demais, eram parte da simulação digital.
Os números na camiseta de An-na

Quando encara a inundação real, An-na está vestida com uma camiseta branca. Nas demais vezes, quando está no meio da simulação, sua camiseta ganha números que aumentam conforme o filme passa, indicando que se tratam das vezes em que ela falhou na missão de encontrar o filho perdido. O número chega a 21.499, representando 60 anos de tempo entre a inudanção e o fim da simulação.
Qual o sentido do experimento?

A grande diferença entre inteligência natural e artificial é a capacidade de gerar emoções. Na visão do diretor, a principal ligação emotiva que um humano pode ter é entre um pai/mãe e um filho. Sendo assim, para recriar a humanidade em uma nova versão melhorada, era necessário que esses seres sentissem o que os humanos sentem. Ao buscar o filho, An-na passa por várias situações nas quais desenvolve emoções que vão além do que há de comum na maternidade. Ela experimenta empatia, medo, amor, coragem, ousadia, senso de proteção e de urgência, entre outros. No fim, ao “quebrar” as regras do programa digital e mergulhar no nada em busca da criança, ela atesta que os novos seres estão prontos para reabitar a Terra.
An-na morreu?

Na prática, sim. O corpo de An-na morreu quando ela foi atingida na nave espacial. Suas memórias, porém, foram armazenadas no computador do projeto para a simulação. Ao fim do processo, ela reaparece na nave com o filho no colo — tudo indica, então, que ela e o garoto foram refeitos de forma sintética, mas abrigam as memórias de toda a aventura até ali.
A humanidade foi extinta ou não?

Boa pergunta. No fim do filme, algumas das naves que partiram do planeta no passado começam a retornar para a Terra que já mostra ter pontos de continentes à vista. Porém, se os humanos que estão nessas naves são sintéticos, é possível dizer que a raça humana não foi extinta? Biológicamente, os humanos provavelmente foram extintos — talvez alguns tenham sobrevivido na fuga. Mas as cópias que vão repopular o planeta trazem consigo uma continuação do que é ser humano, como o conhecimento adquirido até ali, suas culturas e a capacidade de ter emoções. Assim, surge a mensagem final do filme: mais do que salvar a nossa espécie, a missão aqui era salvar o vínculo humano que foi essencial para o desenvolvimento de tudo nos primórdios do planeta.