A epidemiologista Quarraisha Abdool Karim, de 65 anos, é uma daquelas pessoas cuja história se confunde com a própria missão de vida. Descendente de indianos levados ao leste da África do Sul no século 19 para trabalhar em plantações de cana e minas de carvão, cresceu sob o apartheid, quando a cor da pele ditava até as oportunidades mais básicas. Foi nesse cenário que desenvolveu um olhar atento às desigualdades. Não por acaso, acabou se tornando uma das maiores referências globais na luta contra o HIV, com foco especial em meninas e mulheres africanas, tantas vezes marcadas por vulnerabilidade social, violência e abuso.
Sua trajetória começou a ganhar contornos ainda no fim dos anos 1980, depois de estudar na Universidade de Columbia, em Nova York. De volta à África, liderou um levantamento pioneiro que revelou que meninas adolescentes eram infectadas pelo HIV de duas a quatro vezes mais do que os meninos, uma tendência que ia na contramão da maioria dos outros locais do globo. Daí surgiu o conceito de “idade-sexo”, que mostrou como idade e gênero combinados determinavam o risco de infecção — e que homens mais velhos, em relações muitas vezes abusivas, eram um dos principais motores da epidemia da região africana.
Da constatação, ela resolveu colocar a mão na massa para desenvolver soluções práticas. Trabalhando lado a lado com profissionais do sexo, teve a ideia de um gel microbicida vaginal que permitiria às mulheres se proteger de forma autônoma. Mais tarde, seus estudos abriram caminho para a PrEP, hoje uma das principais estratégias globais de prevenção ao HIV. Entre os marcos da carreira, também está a criação do Programa Nacional de Aids na África do Sul, a convite de Nelson Mandela, e pesquisas que levaram tratamento antirretroviral para regiões rurais.
Hoje, Abdool Karim é a primeira mulher a presidir a TWAS, a Academia Mundial de Ciências para o Avanço da Ciência em Países em Desenvolvimento. Continua à frente de pesquisas que conectam prevenção ao HIV, saúde reprodutiva e preparação para futuras pandemias. Durante sua passagem pelo Rio de Janeiro, para a 17ª Conferência Geral da TWAS, organizada em parceria com a Academia Brasileira de Ciências (ABC), concedeu entrevista à VEJA sobre ciência, desigualdade e os desafios de manter o HIV no centro da agenda global. “Quando o foco se dispersa, a prevenção enfraquece, novas infecções aumentam e as desigualdades se ampliam”, alerta.
Veja os principais trechos.
Você é a primeira mulher a presidir a TWAS. O que esse marco representa e quais são suas prioridades no cargo?
Ser a primeira mulher presidente da TWAS é uma honra enorme, mas também um marco histórico para a Academia. Mostra que a ciência de excelência precisa ser inclusiva, aproveitando talentos de todas as partes do mundo, de diferentes gêneros e áreas de estudo. Para mim, esse papel não é só simbólico — é uma responsabilidade de dar mais voz aos cientistas do Sul Global na agenda científica mundial. Minhas prioridades são ampliar o impacto da TWAS onde ele é mais necessário, ajudando a construir capacidade de pesquisa sustentável, formar a próxima geração de cientistas — especialmente mulheres — e garantir que a ciência seja não apenas excelente, mas também relevante para as necessidades da sociedade.
Olhando para sua trajetória, o que mais te marcou na resposta ao HIV?
O que mais me marcou foi ver como a ciência, quando combinada com equidade e parceria comunitária, pode realmente transformar vidas. Nos primeiros anos, o HIV era uma sentença de morte, cheio de estigma e medo. Hoje, graças à pesquisa e ao acesso a tratamento e prevenção, conseguimos torná-lo uma condição manejável. Mas o verdadeiro ponto de virada foi quando as próprias comunidades afetadas — especialmente as mulheres — começaram a ser parceiras ativas na resposta. A liderança delas mostrou que a ciência deve servir às pessoas, e não apenas gerar dados.
Grande parte da sua pesquisa se concentrou em meninas adolescentes e jovens mulheres. Por que essa população é tão vulnerável e como avançar na proteção delas?
Quando começamos a olhar os padrões de infecção na África do Sul, ficou claro que adolescentes e jovens mulheres estavam sendo infectadas muito mais cedo e em maior número que os meninos. Isso não era só biologia — refletia desigualdade de gênero, relações com diferença de idade, pobreza, violência e pouca autonomia nas escolhas de prevenção. Decidi focar nelas porque estão no ponto de interseção entre vulnerabilidade e potencial. Dar conhecimento, ferramentas e oportunidades a essas jovens não só reduz infecções, mas fortalece comunidades inteiras. Houve avanços — mais meninas na escola, mais opções de prevenção e conversas sobre normas de gênero mudando —, mas ainda é frágil. O progresso depende de garantir acesso a serviços confiáveis, confidenciais e livres de estigma, para que cada jovem possa realmente decidir sobre sua saúde e seu futuro.
Você é reconhecida por desenvolver soluções práticas, como o gel de tenofovir, que abriu portas para a PrEP como conhecemos hoje. Quais são hoje suas frentes de pesquisa mais promissoras?
Continuo profundamente envolvida no avanço da prevenção do HIV, em especial garantindo que novas tecnologias sejam acessíveis, aceitáveis e adaptadas às necessidades de mulheres e jovens. Grande parte do meu trabalho atual está focado em transformar descobertas científicas — como opções de prevenção de longa duração, anticorpos amplamente neutralizantes e produtos multipropósito — em impacto real. Estou particularmente animada com as pesquisas sobre o microbioma vaginal e como ele influencia o risco de HIV e a eficácia da prevenção. Ao combinar esse conhecimento com inteligência artificial, ganhamos a capacidade de analisar dados complexos e projetar estratégias de prevenção mais personalizadas. Além disso, venho me dedicando a integrar serviços de HIV, ISTs e saúde reprodutiva, e a usar as lições dessa epidemia para fortalecer a preparação frente a futuras pandemias.

O que pensa sobre os avanços recentes, como a PrEP de longa duração, e sua inclusão em sistemas públicos de saúde?
A PrEP de longa duração representa um avanço importante, sobretudo para pessoas que têm dificuldades em tomar um comprimido diário. Ela oferece mais conveniência, privacidade e escolha — fatores essenciais para gerar impacto real. Apoio fortemente sua inclusão em sistemas públicos de saúde, como o do Brasil, desde que seja feita de forma cuidadosa, com engajamento comunitário, treinamento de profissionais e cadeias de suprimento confiáveis. A chave é a escolha: quando as pessoas podem selecionar o método que se encaixa em suas vidas, a prevenção se torna mais eficaz.
Ainda há atenção suficiente ao HIV no cenário global? Quais os riscos se esse tema sair do foco?
A atenção diminuiu, especialmente durante e após a pandemia de covid-19. Algo que é esperado, mas traz riscos sérios. Quando o foco se dispersa, a prevenção enfraquece, novas infecções aumentam e as desigualdades se ampliam. Precisamos proteger os orçamentos destinados ao HIV, integrar os serviços ao sistema de atenção primária e manter a ciência da prevenção em movimento. A grande lição do HIV é que investimento contínuo e baseado em evidências gera retornos muito maiores — não apenas para o HIV, mas para os sistemas de saúde como um todo.
O negacionismo marcou tanto a epidemia de HIV nos anos 2000 quanto a Covid-19 recentemente. Que lições tiramos dessas experiências?
O negacionismo prospera em ambientes de ausência de informação, desconfiança e politização da ciência. A lição é combinar evidências rigorosas com comunicação transparente e compassiva; engajar vozes locais de confiança desde o início; e institucionalizar a co-gestão comunitária na pesquisa e nos serviços. Compartilhamento rápido de dados, estratégias de prevenção e refutação de boatos, além de educação midiática, são essenciais. Mais importante: precisamos mostrar como a ciência melhora a vida cotidiana; acesso, acessibilidade e dignidade são o melhor antídoto contra a desinformação.
No Brasil, cresce o número de pessoas que chegam à velhice vivendo com HIV ou se infectam mais tarde na vida, muitas vezes enfrentando estigma. Como lidar com esse cenário?
Essa é uma questão importante e muitas vezes negligenciada. Com a melhoria dos tratamentos, mais pessoas vivem longas e saudáveis vidas com HIV, e algumas contraem o vírus em idades mais avançadas. No entanto, as discussões sobre sexualidade na velhice ainda são limitadas, e o estigma é agravado pelo etarismo e por concepções equivocadas sobre comportamento sexual. Precisamos normalizar as conversas sobre saúde sexual em todas as idades. Isso inclui testagem rotineira de HIV e aconselhamento sobre prevenção nos serviços de atenção primária voltados a idosos, além de campanhas de comunicação que afirmem a intimidade e o bem-estar ao longo da vida. Treinar profissionais de saúde para atender pacientes mais velhos sem julgamentos e integrar cuidados para condições crônicas também é essencial.
Você acredita que será possível encontrar uma cura para o HIV no futuro?
Sou cautelosamente otimista. Hoje entendemos mais sobre latência e controle imune do que nunca. Estratégias que combinam reversão ou silenciamento da latência, terapias imunológicas, edição genética e vacinação terapêutica estão avançando. Uma cura escalável, segura e duradoura exigirá investimento contínuo e colaboração. Até lá, nossa tarefa é dupla: reduzir infecções e mortes por meio das ferramentas que já temos e garantir que todas as pessoas vivendo com HIV tenham acesso a um tratamento eficaz, centrado na pessoa e com apoio adequado. Como gosto de dizer, até que chegue esse momento de cura ou vacina, meu trabalho continua.