Maria Firmina dos Reis, uma mulher negra, professora e jornalista, publicou, em 1859, o romance abolicionista “Ursula”, quase 40 anos antes da libertação do povo negro sem uma política de reparação. Filha de escravizada, foi muito aclamada pela crítica literária mas, como outras escritoras negras, passou décadas no esquecimento.
Já no século XX, Carolina Maria de Jesus foi um dos maiores sucessos editoriais do país com a publicação de “Quarto de Despejo: diário de uma favelada”, em 1960, com dez mil exemplares esgotados na primeira semana, traduzido para 13 idiomas.
Em 1978, foi publicada a primeira edição dos Cadernos Negros. Desde então, a publicação anual, que intercala poesia e conto, lançou grandes nomes da literatura brasileira como a rainha Conceição Evaristo. Em 1980, foi fundado o Quilombo, coletivo que tem o objetivo de discutir e aprofundar a presença afro-brasileira na literatura.
Em 2006, Ana Maria Gonçalves publicou “Um Defeito de Cor”, best-seller celebrado por lista recente da Folha de S.Paulo como o livro mais importante do século XXI, e que virou enredo da Portela em 2024.
Entre cada um desses marcos (e não são só esses), há inúmeras autoras, autores e publicações que têm firmado a relevância negra na literatura brasileira. Relevância essa que por muito tempo foi nomeada como nicho, ora por classificação, ora em uma tentativa de redução: literatura negra, literatura afro-brasileira, literatura de mulheres negras.
Mas é cada vez mais evidente que, a autoria negra, com sua subjetividade, suas experiências e linguagens, pulsam o vigor da literatura brasileira contemporânea. Aliás, não há nada melhor sendo feito.
Maior agente cultural do país, Afonso Borges, organizador de festivais literários e projetos de incentivos à leitura há mais de 40 anos, tem dado grande contribuição a essa história há mais de uma década. Ao lado do cientista político Sergio Abranches, criou uma cena literária na qual autoras e autores negros têm total protagonismo. Dois homens brancos com consciência de gênero, raça e classe, utilizando seu lugar para fomentar equidade e justiça.
Algo muito relevante se pensarmos que, em outros festivais brasileiros, isso não é comum. O Brasil tem tantas contradições que, em determinado ano, chamavam músicos negros para estrelar festas literárias, mesmo com os grandes nomes citados acima.
Em 2015, quando o Brasil foi homenageado no Salão do Livro de Paris, havia um homem negro, Paulo Lins, autor do brilhante Cidade de Deus, e um indígena Daniel Munduruku, autor de livros infantis icônicos como ˜Histórias de índio”.
Na semana passada, no III Festival Literário de Paracatu, a editora Simone Paulino, ao presenciar a constelação Ana Maria Gonçalves, Eliana Alves Cruz, Bianca Santana, Calila das Mercês, Andressa Marques, Luciany Aparecida, Eliane Marques e Lilia Guerra celebrou que estava diante de “um movimento literário muito potente”. “Quando eu vi essas mulheres juntas, pensei: tem alguma coisa acontecendo aqui!”
Havia também Carolina Rocha, Claudia Alexandre, Eliane Marques, Fernanda Marques, Lavinia Rocha, Leonor Soares Costa, Lívia Sant’Anna Vaz, Telma Borges e Waleska Barbosa.
E como a mesma Simone Paulino lembrou: Airton Souza, Renato Noguera, Paulo Scott, Jeferson Tenório, Estevão Ribeiro, Luiz Maurício Azevedo e Deivison Nkosi. Isso, no Fliparacatu. Existem outros como Itamar Vieira Jr.!
O ensaísta e crítico literário alemão Walter Benjamin chegou a afirmar que “as idéias se relacionam com as coisas como as constelações com as estrelas.” Obrigado, Afonso Borges, por colocar no mesmo ambiente tantas boas ideias e, porque não dizer, uma grande constelação literária.
(Esse texto foi publicado simultaneamente no site do Fliparacatu)