Nos últimos anos, Lina Meruane buscou se aprofundar em sua memória, identidade e cicatrizes de conflitos políticos. Ao remexer no baú do passado, a chilena escreveu Sinais de nós (Ed. Relicário), em que conta sua infância durante a ditadura de Augusto Pinochet, e Torna-se Palestina (Ed. Relicário), em que mergulha em sua árvore genealógica palestina. A escritora, convidada para participar da bienal neste sábado, 21, conversou com a coluna GENTE, sobre como surgiu ideia de escrever livros políticos. Em suas obras, Lina se inspirou em momentos marcantes na qual presenciou. “Minha tomada de consciência de que sou de uma família palestina aconteceu primeiro nos Estados Unidos, no mesmo mês em que fui fazer meu doutorado em Nova York ocorreram os atentados às Torres Gêmeas, e a mídia emitiu uma espécie de sentença imediata de que tratava-se de um ataque palestino liderado por Yasser Arafat. Isso acendeu todos os alertas da identidade em mim, porque até então, no Chile — embora soubesse que era de ascendência palestina — nunca tinha pensado muito sobre isso, porque não era um problema”, disse.
Naquele momento, ela identificou que sua “palestinidade” poderia ser um problema – isso foi evidenciado quando viajou para Israel, em 2012. “No aeroporto, fui tratada como uma palestina — ou seja, fui tratada como uma terrorista. Fui interrogada, passei várias horas no que chamo de ‘a salinha’. Isso ativou todo meu repertório de reflexões sobre o poder, sobre a vigilância e sobre a manipulação dos discursos de segurança”. Lina afirmou que o impacto maio foi quando a ficha caiu de que sua ancestralidade e identidade poderia ser mal vista em muitos países ocidentais. “Embora eu soubesse que a situação na Palestina sempre foi muito complexa, difícil e violenta, vivê-la na pele, ter uma experiência pessoal, sempre marca — te condiciona de outra forma e te dá um conhecimento muito mais claro de como é a vida naquele lugar”.
Atualmente, a Palestina é diariamente atacada por Israel – consequência do atentado do Hamas em Israel no dia 7 de outubro de 2023. Desde então, uma guerra se instaurou no território, com ataques de Israel destruindo infraestruturas básicas, como hospitais; estima-se que mais de 64 mil palestino já morreram desde o início do conflito. A chilena, que já visitou o território palestino, critica amplamente a postura de israelense – para ela, trata-se de um genocídio. “A violência de Israel contra a Palestina é uma violência que dura há mais de 75 anos. Quando me perguntam sobre a atual guerra entre Israel e Hamas, é importante ressaltar que não se trata de uma guerra. A palavra ‘guerra’ está mal usada aqui. Ela seria adequada, por exemplo, no contexto entre Israel e Irã, onde há ataques de ambos os lados entre estados soberanos. Mas o que ocorre na Palestina é uma prática de colonialismo genocida contra uma população civil desarmada. Hamas é uma força política e militar, mas não representa um Estado. Assim, não é uma guerra A desproporcionalidade dos ataques, a destruição de casas, hospitais, escolas, e a fome — com 500 mil pessoas em Gaza correndo risco iminente de morrer de fome, segundo organizações internacionais — não têm outro nome senão genocídio”, pontuou.
Mas, para além de comentar sobre sua descendência palestina, Lina também tem costume de refletir sobre o passado ditatorial do Chile. “Eu fui uma criança muito protegida, estudei em um colégio inglês onde não se falava de política, e a geração dos pais da classe média — pais não politizados, como os meus, no sentido de que não aderiam a nenhuma das duas posições”, disse. Revisitar esse momento é perceber, apesar do silêncio, os sinais claros de que estava em meio a uma ditadura. “Eu era uma criança e não tinha noção do que era um Estado, um governo democrático, ou o que significava viver em uma ditadura.. Isso me impactou muito quando, por volta dos 16 anos, o meu colégio aceitou uma equipe de entrevistadores da BBC que vieram nos perguntar o que pensávamos da situação política no Chile. Isso gerou um debate intensíssimo, do qual eu não tinha ideia, com minhas colegas, e foi como uma queda do pano da ditadura. Foi um momento muito tenso na família, porque havia posições muito diversas tanto na família nuclear quanto na família ampliada. Isso me causou muita dor”.
De acordo com ela, o mundo vive uma onda da extrema-direita, com alguns defendendo um regime ditatorial. ‘Há movimentos que defendem o legado da ditadura, tanto político — alegando necessidade de golpe, o que é injustificável — quanto econômico, louvando o legado neoliberal sem considerar os custos sociais dessas políticas. Atualmente, há um partido recém-fundado, o Partido Republicano, que tem crescido muito nas eleições e se posiciona com mais violência que os partidos tradicionais de direita no Chile, como a UDI e Renovação Nacional”, completou.