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A 5G e a pedra lascada: o descompasso entre trabalho e lei

As próximas duas colunas vão se dedicar a discutir algumas das avassaladoras mudanças no mundo do trabalho atual, e mostrar como a legislação (e a Justiça) trabalhista brasileira está muito despreparada para lidar com esse novo cenário. Enquanto o novo mundo opera em 5G, algoritmos e plataformas, a legislação ainda vive na idade da pedra lascada.

Na coluna de hoje, começamos pelo fenômeno mais transformador e mais acelerado pela pandemia de 2020, algo que, ao que tudo indica, não tem volta: o home office.

Mais de meia década depois, a legislação trabalhista ainda não tem a menor ideia de como lidar com esse arranjo, que mudou a geografia e o funcionamento de grandes cidades como São Paulo. Qualquer motorista de Uber ou taxista sabe: o trânsito pesado agora vai de terça a quinta, porque às segundas e sextas uma parte relevante da força de trabalho opera de casa.

O mundo corporativo também se reorganizou. Na instituição em que trabalho, por exemplo, colaboradores de backoffice já não têm mais mesas fixas. O espaço é rotativo, e gestores controlam, dia a dia, quem estará presencialmente, quem estará no modo remoto e quantos postos de trabalho estão disponíveis.

Cinco anos atrás, o home office parecia o ápice da autonomia: trabalhar de qualquer lugar, com mais liberdade e menos trânsito, um alívio bem-vindo em cidades marcadas por congestionamentos sem fim e sistemas de transporte público precários. Mas, como sempre ocorre quando o mundo do trabalho muda mais rapidamente que o Direito, conflitos surgiram sem que se soubesse o “norte” das soluções e, nesses casos, processos trabalhistas brotaram sem parar. Gestores de RH observam tudo confusos, enquanto juízes tentam encaixar arranjos do século XXI em categorias criadas em 1943 (ano de criação da CLT, a getulista Consolidação das Leis do Trabalho).

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Segundo o IBGE, 7,4 milhões de brasileiros trabalharam em home office em 2022. Isso deixou de ser benefício corporativo e virou estrutura do mercado de trabalho. Mas essa nova estrutura repousa sobre uma base jurídica de outro século: o século do relógio de ponto, da supervisão presencial e da fábrica física, elementos que não existem na sala de casa ou no espaço de coworking.

Enquanto isso, a litigância sobre o tema cresce. Não se trata de culpar o home office por tudo, mas é inegável que ambientes regulatórios confusos alimentam disputas. No auge da pandemia, por exemplo, as reclamações trabalhistas envolvendo teletrabalho cresceram 270%, segundo levantamento citado pelo site InfoMoney, que comparou ações registradas entre março e agosto de 2019 e o mesmo período de 2020. A curva se estabilizou, mas o sinal permanece: quando a tecnologia corre na frente e a legislação fica para trás, quem preenche o vácuo é a litigância.

Do ponto de vista econômico, o home office virou um laboratório de falhas de mercado clássicas: problemas de agência, incentivos desalinhados, altos custos de monitoramento e risco moral. Empresas não sabem medir produtividade com precisão; empregados não sabem até onde vai a obrigação de responder mensagens fora da “jornada”. Ninguém sabe, de forma clara, quem deve arcar com custos de equipamentos, ergonomia, energia ou internet. E, quando ninguém sabe, todos acham que têm razão, e daí abundam os conflitos, que logo viram litígios. É nesse ponto que a celebrada “flexibilidade” revela seu lado menos romântico: flexibilidade sem clareza gera incerteza, e incerteza gera custos, muitos custos, e de todas as naturezas – financeira, jurídica e, sim, psicológica.

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Isso não quer dizer que o home office é o vilão. Ele trouxe ganhos reais de bem-estar e eficiência. Mas escancarou um problema que o Brasil insiste em ignorar: transformações profundas na forma de trabalhar exigem transformações equivalentes na forma de regular. E essa mudança regulatória, como quase sempre, tarda a chegar. Reguladores e intérpretes do Direito permanecem presos ao início do século XX, incapazes de oferecer parâmetros mínimos, modernos e inteligentes. Assim, o que deveria ser um grande avanço tecnológico vira ambiguidade; e ambiguidades, no Brasil, costumam terminar no Judiciário (como discutimos na última coluna, anterior a esta).

E este é apenas o primeiro capítulo da discussão. Nas próximas semanas, avançaremos para um tema ainda mais desafiador: as novas formas de trabalho que não cabem em nenhum molde clássico da CLT de 1943, embora reguladores insistam em forçá-las para dentro dele. Discutiremos sobre os trabalhadores de plataformas digitais – categoria de profissionais que não têm lugar fixo ou jornada fixa, não têm estabilidade e nem subordinação clara, mas cujo trabalho gera impactos econômicos gigantescos. Esses postos de trabalho têm absorvido uma parte enorme de pessoas na economia moderna, e, sem eles, uma população ainda maior do que a atual estaria abaixo da linha da pobreza no Brasil e no mundo. Porém, as leis de diversos países ainda não sabem como lidar com eles.

O trabalho já vive no mundo da 5G, enquanto o Direito ainda vive na idade da Pedra Lascada. Enquanto esse descompasso persistir, quem paga a conta são os próprios trabalhadores.

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Referência:

https://www.infomoney.com.br/carreira/processos-trabalhistas-sobre-home-office-sobem-270-parlamentares-reagem/

*Luciana Yeung é Professora Associada e Coordenadora do Núcleo de Análise Econômica do Direito do Insper. Membro-fundadora e ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), Diretora da Associação Latino-americana de Direito e Economia (ALACDE). Pesquisadora-visitante no Law and Economics Foundation na Universidade de St Gällen (Suíça) e no Institute of Law and Economics, da Universidade de Hamburgo (Alemanha). Autora de “O Judiciário Brasileiro – uma análise empírica e econômica”, “Curso de Análise Econômica do Direito” (juntamente com Bradson Camelo) e “Análise Econômica do Direito: Temas Contemporâneos” (coord.), além de dezenas de outras publicações, todos na área do Direito & Economia. 

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