A cena viralizou: Nicolas Sarkozy tenta se retirar dignamente do tribunal onde havia acabado de ser condenado a cinco anos de prisão, mas a mulher, Carla Bruni, arruina tudo ao tirar da frente um microfone da Mediapart, o jornal digital que começou tudo ao noticiar mensagens de agentes da Líbia falando em dinheiro não contabilizado, na casa dos 50 milhões de euros.
Em vez de passar a imagem de leoa na defesa do companheiro, a modelo italiana que, contra todos os prognósticos, encontrou em Sarkozy um parceiro de vida, transmitiu arrogância e prepotência ao arrancar a capa vermelha do microfone. Exatamente o que tantos políticos passam para a turba que os honra com seus votos e depois vai para o fim da fila.
Os elementos aqui envolvidos merecem ser enfatizados. É de rasgar as vestes e passar cinzas na cabeça a ideia de que um futuro presidente da França se enredou com ninguém menos que Moamar Kadafi, o tirano da Líbia que acabou derrubado num levante popular em 2011 e executado no meio do deserto quando tentava fugir, com a humilhação final de uma punhalada no ânus, um detalhe que apavora muitos ditadores da sua estirpe.
Sarkozy é de direita e diz que juízes de esquerda o perseguem e admitem provas inexistentes. Muitos juízes franceses realmente se parecem com os colegas brasileiros em termos de simpatias ideológicas que contaminam suas ações no exercício da magistratura, mas o caso das sacolas de euros para campanha política, mesmo sem aquele carimbo de “dinheiro para corrupção” que o público tanto deseja ver, não parece inventado. Tecnicamente, Sarkozy foi condenado por associação ilícita.
EMPREGOS FANTASMA
Ainda tem um mês para a justiça decidir onde cumprirá a pena obrigatória de prisão, a qual enfrentará “de cabeça erguida”. Há precedentes importantes: o ex-presidente Jacques Chirac e três ex-primeiros-ministros, François Fillon (que também perdeu a chance de ser um presidente centrista por criar um emprego fantasma para a mulher), Alain Juppé e Édith Cresson, também sofreram condenações pesadas, mas sem ir para a cadeia.
Carla Bruni, que estarreceu o mundo ao começar um namoro com o então presidente francês apenas um mês depois dele ter sido abandonado pela esposa, também está enrolada, com uma acusação de associação ilícita em apoio de uma campanha intitulada Operação Salvar Sarko, para livrar a cara do marido, envolvendo uma quantia de quatro milhões de euros.
Só para lembrar: fora do mundo da moda, Carla era conhecida como a namorada fixa mantida por Mick Jagger enquanto continuava casado com a modelo Jerry Hall. Já conhecia muito bem o mundo da fama quando se envolveu com Sarkozy, deixando-o tão deslumbrado que chegava a elogiar seus dotes físicos em reuniões ministeriais.
Para o presidente, foi uma bela revanche: a esposa Cécile havia acabado de abandoná-lo pelo namorado de quem realmente gostava. Sarkozy também jogava alto e, antes da ruptura, atendendo a um pedido de Kadafi, mandou Cécile ir à Líbia para resgatar pessoalmente cinco enfermeiras búlgaras e um médico palestino acusados insanamente de ter inoculado o vírus da Aids em criancinhas líbias.
COVIL DO CHACAL
Kadafi, que como ficou comprovado depois, estuprava regularmente mulheres e filhas (e filhos também) de personalidades líbias, tinha ficado obcecado por Cécile Sarkozy. Mandar a esposa ao covil de um chacal dessa natureza exige sangue frio. Ou talvez a certeza de que os favores trocados falariam mais alto?
O excessivo índice de exposição midiática e um governo medíocre azedaram a aspiração de Sarkozy a ser reeleito. Perdeu para François Hollande, um socialista pacato cujo lema era “Senhor Normal”- é claro que ele foi bem anormal e virou objeto de chacota ao ser flagrado chegando na casa da amante de moto e capacete. A esposa surtou e tentou se suicidar.
A política francesa tem dessas reviravoltas emocionantes. Viver diante das câmaras obviamente exige muito das pessoas que se relacionam com políticos de alta estirpe. No momento, por exemplo, Emmanuel Macron apoia o processo por difamação em que sua esposa, Brigitte, apresentará provas de que é mulher original de fábrica, não trans, como diz uma execrável teoria conspiracionista.
ACIMA DOS MORTAIS COMUNS
Quando o poder passa, é possível aspirar a uma maior normalidade? Carla Bruni, por exemplo, conseguiu dar à sua filha com Sarkozy, Giulia, uma infância protegida da curiosidade pública – com a adolescência e o acesso às redes sociais, claro que tudo mudou. Carla também revelou apenas no ano passado que havia tido um câncer de mama em 2019.
Agora ela voltou aos holofotes, exatamente de uma forma que causa horror a todos os especialistas em relações públicas, ao passar uma imagem de prepotência alimentada pelo sentimento de que tem privilégios acima dos mortais comuns.
Estará Nicolas Sarkoky tendo a punição que merece ou sofrendo uma injustiça, com uma pena “absurda e incompreensível”, na definição de um editorial do Figaro? O ex-presidente foi absolvido das acusações de corrupção e desvio de fundos. Merece cinco anos de cadeia por uma acusação “menor”, por ignorar o que assessores tramavam com Kadafi?
Por menos simpatia que ele e sua linda e arrogante mulher despertem, é importante que, na pátria mãe de tantos dos princípios fundamentais das sociedades modernas, a justiça não seja usada para punições políticas e os culpados paguem pelo que fizerem, não o que se imagina que tenham feito.