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Sabor em fatias

Em uma certa tarde de 1950, a condessa Amalia Nani Mocenigo entrou, chorosa, pela discreta porta do Harry’s Bar, em Veneza. Frequentadora assídua do estabelecimento de Giuseppe Cipriani, ela tinha acabado de descobrir que, graças a uma anemia, tinha de mudar a dieta. Nada do entrecôte grelhado que costumava pedir: a carne para ela devia ser magra e crua. Será que ele conseguia fazer algo delicioso que ela pudesse comer?

Cipriani sentou a querida cliente à sua mesa habitual e pediu 15 minutos para resolver seu desconsolo. Voltou da cozinha com um leque de finas fatias de carne cobertas com um molho claro, à base de maionese, leite e molho inglês. “O que é isso?, ela perguntou. “É um carpaccio.”

A naturalidade da resposta do chef não dava a entender que o prato acabava de ser batizado. O nome fora escolhido por causa do vermelho e branco das pinturas de Vittore Carpaccio, artista veneziano do Renascimento, que Cipriani apreciava muito.

Os relatos sobre a invenção do prato correm por aí com algumas variações, mas a versão acima está no livro em que Arrigo Cipriani conta a história do bar do pai.

Várias culturas têm pratos à base de proteína crua. O sushi e o sashimi japoneses são exemplos muito assimilados entre nós. O peixe cru também está nos ceviches peruanos, mas neles o ingrediente “cozinha” no sumo do limão em que é marinado. Se ficarmos apenas na carne bovina, podemos citar o “steak tartar”, tão apreciado pelos franceses, ou o quibe cru, típico da cozinha sírio-libanesa.

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Mas, ao criar o carpaccio, Giuseppe Cipriani não precisou viajar para longe. O prato tem sua inspiração mais próxima na “carne cruda alla piemontese” – traduzindo, “carne crua à moda do Piemonte”. Trata-se de um preparo rural do norte da Itália, também chamado de “carne zingara”, que significa cigana. A origem talvez explique por que a condessa não o conhecia.

Mesmo tendo passado pelo crivo da nobreza, o carpaccio demorou para chegar por aqui. O saudoso Giancarlo Bolla dizia ter sido o responsável por introduzi-lo à mesa paulistana no começo do La Tambouille, restaurante que fundou em 1971. A iguaria entrou para o menu após um cliente que tinha visitado Harry’s Bar pedir a Bolla para reproduzir o prato.

Com os anos, porém, ele se popularizou tanto que seu nome se tornou um substantivo comum, passando a valer para qualquer preparo em que haja uma base de fatias finíssimas de algo.

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No Brasil, é muito comum o molho levar mostarda e alcaparras, que não constam do original. E, em 2008, quando promovi por aqui o “Jantar do Século”, reunindo os maiores nomes da gastronomia molecular, o cardápio incluiu um carpaccio de melancia, preparado por Andoni Luiz Aduriz. O chef espanhol, aliás, partia do mesmo princípio que eu havia descoberto uns anos antes, desidratando a fruta para se assemelhar à carne.

Eu mesma tenho minhas versões, como o “carpaccio enroladinho”, no qual a salada é envolta pelas lâminas de carne, ou o de tomate, em que o fruto fatiado serve de base para um mix de folhas e uma proteína a escolher. Variações com salmão ou abobrinha aparecem com frequência nos restaurantes.

Seja qual for a forma, o essencial não muda: finas fatias que, com seus sabores concentrados, transformam um prato vazio em obra de arte, assim como as pinceladas de um pintor talentoso fazem com a tela em branco.

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