
De início, Tremembé: O Presídio dos Famosos (Editora Matrix, 2025), pode parecer um mero perfil de um complexo prisional que abriga alguns dos criminosos mais emblemáticos e conhecidos do Brasil. No entanto, basta ler as primeiras páginas e ver as fotografias na abertura de cada capítulo para se dar conta de que, na verdade, Tremembé é um local majoritariamente de criminosos anônimos. Quem defende essa tese é o jornalista e escritor Ullisses Campbell, responsável pelo livro e já conhecido por biografar histórias de criminosos como Elize Matsunaga, Francisco de Assis Pereira (o Maníaco do Parque) e Suzane Von Richthofen.
“No Tremembé, eu fiz uma curadoria de crimes em que eu mostro pessoas que, por uma uma escolha errada, como dirigir embriagado ou por ter um transtorno mental negligenciado, acabaram se tornando criminosas e foram parar em Tremembé”, diz o escritor a VEJA, enquanto explica sobre seu modus operandi durante o preparo da obra, que já está há 2 semanas consecutivas entre os mais vendidos de VEJA.
Sua longa experiência investigando a psicologia por trás de crimes brutais nacionalmente conhecidos foi inspiração para a série Tremembé, da Prime Video, que estreia em 31 de outubro e contou com a presença do escritor na roteirização.
A produção da série então fomentou o livro, que é o primeiro de uma trilogia que se passa exclusivamente dentro do complexo prisional do Tremembé. O primeiro volume, escrito até boa parte de 2025, aborda casos recentes, ainda frescos na memória do leitor, ganhando o público pelo elemento da surpresa e da curiosidade sobre como esses recém-presos estariam lidando com a rotina do presídio. Um exemplo é a história de Fernando Sastre, que em 2024 atropelou o motorista de aplicativo Ornaldo da Silva Viana enquanto dirigia um Porsche embriagado e em alta velocidade. Após o impacto da batida levar a vítima a uma morte brutal, Sastre enfrenta a pena no Tremembé com profunda melancolia, apesar de conhecido pelo seu bom comportamento.
Crimes como o de Sastre ajudam a explicar a sociedade brasileira, como defende Campbell. Tremembé deixa isso claro quando descreve a manutenção das estruturas de poder dentro da prisão, onde grandes empresários, médicos ou políticos adotam uma postura de liderança, subalternizando aqueles que não ocupam as mesmas camadas sociais, em um claro reflexo do que acontece também fora das grades. Vale ler o capítulo 4, intitulado Lux Luxo, que se aprofunda na relação de parceria entre Roger Abdelmassih, ex-médico de celebridades preso por cometer estupros em série contra suas pacientes, o empresário Luiz Estevão, detido por crimes de corrupção e estelionato, e o ex-editor de jornal Antônio Marcos Pimenta Neves, que cometeu feminicídio contra a repórter Sandra Gomide em 2000. Todos têm em comum o fato de terem sido homens bem-sucedidos e de exigirem algum tipo de tratamento diferenciado dentro da prisão.
Todas as nuances da narrativa estão amarradas em capítulos mistos, que contam a história de vários detentos e detentas ao mesmo tempo, por vezes detalhando o contexto histórico, social ou criminal que os une. Ullisses conversou com VEJA sobre esse processo criativo e sobre a decisão de contar histórias anônimas, bem como a relação com os presidiários que lhe concederam relatos para o livro. Confira abaixo:
Todos os seus outros livros foram sobre criminosos famosos, enquanto o Tremembé é um livro majoritariamente sobre presos anônimos. Por que mudou o objeto da sua escrita? O livro Suzane: Assassina e Manipuladora, que é meu primeiro livro, ele já é recheado de histórias de pessoas não famosas, que são os criminosos que cumpriram pena junto com a Suzane ou com os irmãos Cravinhos na penitenciária masculina. Depois que esse livro foi publicado, eu recebi muito retorno de leitores dizendo que tinham gostado muito dessas histórias paralelas. Quando fui escrever o livro da Elize Matsunaga, eu investi novamente nas histórias paralelas. O livro da Elize não é tanto sobre o crime. Claro, tem o crime dela, é a biografia dela, mas é um livro sobre o universo da prostituição, onde personagens que o público nem conhece ganham muitas páginas. Eu repeti essa fórmula na [biografia da] Flor de Lis e no [livro sobre o] Maníaco do Parque. E aí eu fiquei me perguntando: “Será que o leitor compraria um livro meu para ler só histórias de pessoas que eles nunca ouviram falar?”, e aí eu me desafiei, a editora topou, mas veio a série e atropelou esse meu projeto, porque é um livro que está colado na série, já teve os direitos adquiridos pela Prime Video também. Então, por uma questão mercadológica e de marketing da editora, a gente colocou o subtítulo “O presídio dos famosos”, mas eu consegui recheá-lo com muitas outras histórias.
Por que dar atenção a essas histórias? Os crimes da Suzane, da Elize, do Maníaco [do Parque], do Robinho, do Thiago Brennand, do Gil Rugai, todo mundo já sabe. São histórias em que seus começos, meios e fins já foram dados pela ampla cobertura da mídia. Eu faço a defesa de que o Tremembé não é um livro sobre criminosos, ele é um livro sobre nós, sobre como a gente pode ir parar em Tremembé. Eu fiz uma curadoria de crimes em que eu mostro pessoas que, por uma uma escolha errada, como dirigir embriagado ou por ter um transtorno mental negligenciado, acabaram se tornando criminosas e foram parar em Tremembé.
Foi uma tentativa de trazer uma outra visão sobre Tremembé como lugar? A penitenciária é só um pano de fundo. Obviamente eu conto ali o que é a penitenciária, como é o dia a dia, que não é só uma penitenciária e sim cinco penitenciárias que compõem este complexo chamado Tremembé, falo sobre o perfil de cada penitenciária, mas isso não chega a ser nem 10% do livro, porque o foco é a natureza sombria do ser humano, como as pessoas são capazes de cometerem crimes extremamente brutais contra membros da própria família, o que essas pessoas fizeram para ir parar em Tremembé. Esse é o fio condutor do livro. A estrutura da penitenciária, ela enquanto uma instituição, é só um pano de fundo. No início eu cheguei até a pensar em transformar a penitenciária num personagem, para mostrar ela como uma grande mãe, que acolhia todas essas pessoas para regenerá-las e depois colocava essas pessoas pouco a pouco na rua, mas achei que ficaria muito no campo da literatura. O que eu gosto mesmo é da psicologia do crime, tentar entender o que se passa na cabeça de alguém que decide matar os próprios pais ou de alguém que decide, por uma escolha muito bem planejada, executar o marido, esquartejar e colocar o corpo numa mala. Eu me atento mais a essas questões comportamentais.
O que foi mais difícil na construção da relação com os presos que conheceu e entrevistou em Tremembé? São entrevistas como quaisquer outras, mas se eu estivesse trabalhando para uma revista ou para um jornal, eu teria muito pouco tempo para estreitar esses laços, porque tudo no jornalismo diário, semanal ou de internet é para ontem. Não dá tempo de criar uma conexão muito próxima a ponto da pessoa se abrir. Para um livro, que eu levo de um ano e meio a dois anos para escrever, dá tempo. A primeira vez que eu visito, eu não faço pergunta nenhuma, na segunda vez eu converso sobre banalidades. Quando eu preciso entrar na história mais delicada que é o crime, a pessoa já está à vontade, então essa conversa acaba sendo naturalizada. Não tenho muitas dificuldades nessa parte. Existe ainda um facilitador: essas pessoas todas já me conhecem e sabem do meu trabalho. Meus livros são lidos pela população carcerária, algumas pessoas já me procuraram querendo participar, querendo que eu contasse a história deles. Mas essa intimidade profissional decorre de vários encontros, é um processo bem demorado.
O que mais o surpreendeu sobre o Tremembé? Um momento marcante foi quando eu entrei na penitenciária onde está o Ronnie Lessa [assassino confesso de Marielle Franco]. Ele tem muito medo de ser executado, não é à toa que ele pediu para ir para Tremembé, foi um dos acordos de delação premiada que ele fez. Quando eu visitei a penitenciária, eu vi que os presos da galeria em que ele estava não aceitavam ele. Na época da comemoração do Dia Internacional da Mulher, os outros presos pregaram uma gravura com a foto da Marielle como uma forma de provocá-lo. Me marcou essa sutileza da provocação, que é uma coisa da ambiência carcerária, ali tudo é feito por códigos, é tudo não dito, nas entrelinhas. A última história do livro também me marcou muito, a história do Matheus Carneiro Assunção, que era um Procurador da República e foi preso por esfaquear uma juíza aqui no Tribunal da Avenida Paulista. O porquê desse crime, como ele se desdobrou depois do crime e o que aconteceu com ele também me marcou bastante. Não por acaso é a história que encerra o livro, porque eu acho que é a história que mais faz o leitor refletir sobre a sua própria vida. Essa história e a outra que está no mesmo capítulo, do Fernando Sastre, um jovem de 24 anos que pegou o carro de luxo do pai, bebeu, dirigiu e acabou matando um motorista de aplicativo. Essas histórias que estão ali no final do livro são interessantes por estarem muito próximas de qualquer um de nós.
A biografia da Suzane Von Richthofen foi a primeira que você escreveu de todos os seus livros e agora em Tremembé você voltou um pouco para esse assunto, trazendo novas histórias sobre ela. Como é a relação que construiu com Suzane ao longo do tempo e como foi voltar para essa personagem e para o universo dela em seu novo livro? A escolha de colocar a Suzane neste livro foi também uma escolha mercadológica, porque a Suzane tem muito apelo junto ao público. E o livro também é uma peça comercial, tivemos de colocar a Suzane porque o público tem muito interesse nela. Meus contatos também sempre foram profissionais, ela nunca topou dar entrevista. O livro sobre ela inclusive nasce na redação de VEJA, porque quando eu era repórter da revista, eu recebi uma missão de contar como seria a primeira saidinha dela, em que ela passou sete dias fora. Eu fiz essa reportagem e ela repercutiu muito. A partir daí, como eu tinha pesquisado e apurado muito, fui ampliando a pesquisa para poder escrever o livro. Mas eu tive alguns encontros com ela. Eu lembro de um almoço lá em Angatuba, quando ela estava namorando Rogério Olberg, mas o meu contato é assim, profissional. Acabou que algumas coisas foram checadas com ela na biografia não autorizada dela e ela corrigia algumas partes, mas entrevista mesmo ela nunca deu. Tudo o que está no livro Tremembé: o presídio dos famosos, a história dela dentro da faculdade e o romance que ela teve lá dentro, foi escrito a partir de relatos de alunos que conviveram com ela, de professores, do diretor da faculdade e da advogada que na época providenciou autorização para que ela estudasse em Tremembé. É uma história escrita a partir do olhar de terceiros e não do ponto de vista dela.
Esse afastamento da Suzane facilitou a narrativa? Eu não diria que facilitou, mas deixou mais perto da verdade. Porque se eu fosse atrás da Suzane para ela falar do dia a dia dela na faculdade, ela ia passar um filtro. A gente tem esse poder de passar esse filtro. Se eu for atrás do entorno, essas pessoas trazem o que é bonito e o que é feio sobre aquela situação. Eu diria que são relatos mais puros, mais brutos, sem passar por qualquer tipo de lapidação. Aliás, as biografias não autorizadas, que contam essas histórias a partir do olhar de terceiros, são muito mais apreciadas no mercado editorial do que as autobiografias, por exemplo. Mas como jornalista, eu tenho obrigação profissional de procurar os criminosos e perguntar se eles querem participar do livro, aí a pessoa decide se quer ou não. A Suzane sempre disse não.
A série Tremembé, do Prime Video, se inspira nos seus livros anteriores, principalmente nas biografias individuais. Tem algum aspecto dessas obras que você considera primordial que a série mantenha, apesar dela ter também sua própria liberdade criativa? O meu papel na sala de roteiro de Tremembé foi justamente esse, de trazer o projeto o mais perto da realidade possível. E eu acho que a gente conseguiu isso a partir do momento em que a maioria dos diálogos, das cenas e das situações que a série vai apresentar, realmente aconteceram. Em alguns dos teasers que lançaram, a Suzane fala sobre a saudade que ela sente da mãe e aí no outro teaser ela fala que tem direito a ter uma segunda chance. Isso tudo realmente aconteceu e foi extraído do livro, que por sua vez extraiu isso de documentos. E eu fico muito contente com o resultado. Apesar de ser uma obra de ficção baseada em fatos reais, ela está mais próxima da realidade do que da ficção.