Há dez anos, o filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, abordou na ficção o início de uma mudança importante no Brasil, o ingresso de jovens pobres nas universidades públicas, até então dominadas pela elite. A história, que termina com a filha de Val, a empregada da casa, entrando numa universidade pública e o filho dos patrões indo fazer um intercâmbio de seis meses na Austrália não teve uma continuação. Se tivesse, provavelmente, mostraria que atacar a desigualdade só com esforço e educação não é suficiente para dar um final feliz para enredos como esse.
Recém-lançado, o livro A loteria do nascimento – Filha do porteiro termina universidade, mas não alcança filho do rico (Editora Jandaíra), do economista Michael França e do sociólogo Fillipi Nascimento, mostra de forma didática, por meio de histórias e dados, como no Brasil as desigualdades, em geral, não derivam das escolhas ou dos esforços de cada um, mas sim do ambiente e das condições nas quais nascemos, a chamada loteria do nascimento. “Mesmo quando consideramos aqueles com os mesmos diplomas universitários, mulheres, negros e indivíduos de famílias de baixa renda ainda enfrentam uma força, muitas vezes sutil, porém significativa, que os empurra sistematicamente para trás”, dizem.
“O estado e a sociedade brasileira operam para manter as vantagens daqueles que já nasceram com patrimônio familiar maior”, afirma Michael França, em entrevista à coluna.
NO BRASIL, OS 10% MAIS POBRES CHEGAM A COMPROMETER 32% DE SUA RENDA COM TRIBUTOS
No Brasil, pobres e classe média fazem notadamente um esforço fiscal maior que os super-ricos. “O Estado segue arrecadando de quem consome e não de quem acumula”, diz o economista.
Segundo ele, os 10% mais pobres chegam a comprometer mais de 32% de sua renda com tributos, enquanto o 1% mais rico paga menos de 10% de sua renda em impostos. “No final das contas, o pobre e a classe média financiam o próprio atraso”, lamenta.
“O problema não é econômico. É político. Em termos econômicos, a gente sabe o que precisa ser feito para chegarmos numa sociedade mais justa”, afirma. “O Brasil tem sempre essa preocupação de achar uma grande política que vai afetar de forma mais sistemática a desigualdade e a mobilidade social, mas estamos falando de um conjunto tão cumulativo de vantagens e desvantagem de determinados grupos que será necessário reformar a estrutura para atacar o problema de todos os lados, começando com a forma que o Estado arrecada e gasta”, defende.
Embora o Brasil seja um dos países mais desiguais do mundo, a população pouco fala sobre desigualdade. O debate, mesmo entre aqueles que se dizem mais ilustrados, não sai do superficial, opina. Há quem ache que o mercado vai resolver tudo. Outros que é o Estado. “Como vamos mudar uma sociedade dessas, em que tanto a população mais favorecida quanto a de baixa renda sabem muito pouco sobre desigualdade e política pública?”, questiona.
Vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico e coordenador do Instituto de Estudos Raciais do Insper, França acha que o jovem deve aprender na escola coisas básicas do funcionamento da própria sociedade que fazem com que essas desigualdades se perpetuem. Também precisa ser apresentado aos conceitos das políticas públicas, além de ter noções sobre o funcionamento das instituições para entender o que fazem os deputados estadual e federal, por exemplo. Só assim conseguirá cobrar de seus representantes.
POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS
Para o sociólogo Fillipi Nascimento, coautor da publicação, outra questão que deve ser reforçada a médio e longo prazo são as políticas de ações afirmativas no mercado de trabalho. Na educação, elas contribuíram para a ampliação do acesso às universidades de um público mais diversificado. “Por que não estender mais essas políticas para o mercado de trabalho?”, questiona, em entrevista à coluna.
Só o acesso, no entanto, não basta. “Precisamos garantir a permanência, fazer com que as pessoas tenham condições de alcançar uma posição no mercado de trabalho e de progredir nele”, afirma. Para que isso aconteça, são necessárias ações que vão da mobilidade urbana a disponibilidade de creches, além de iniciativas do mercado que viabilizem essa permanência e progressão.
Também é necessário um investimento maior na interiorização das universidades, que ainda é incipiente, e um repensar da cultura acadêmica, ainda regida de forma elitista. “Muitos professores exigem que o aluno fique até às 22h em sala de aula, quando o último ônibus passa às 21h30”, exemplifica.
O sociólogo acredita que o acesso às políticas públicas, de forma geral, tem ainda um papel fundamental na redução das desigualdades e na mobilidade social, desde as políticas de saúde, educação até as de saneamento, iluminação pública, limpeza, transporte e enfrentamento da violência.
Nos países escandinavos, que lideram o ranking de mobilidade social, famílias de baixa renda levam duas gerações – em vez de nove, como no Brasil – para atingir a renda média. O que faz a diferença, segundo ele, é um investimento pesado em políticas de bem-estar social, educação e qualificação para o trabalho.
“Quando a gente fala de educação, por exemplo, foca muito no ensino superior e deixa de contemplar o acesso ao ensino fundamental e ao ensino médio, que têm um peso muito importante na trajetória acadêmica das pessoas”, lembra. Ampliar os instrumentos de assistência da saúde da população, incluindo saúde mental, também é igualmente importante assim como a segurança pública.
“Sabemos que boa parte das comunidades brasileiras está assolada pela violência. Há muitas crianças e adolescentes que não conseguem acessar as escolas por causa disso. É preciso pensar mecanismos que assegurem que essa parcela da população tenha acesso à educação e consiga permanecer nas escolas”, acrescenta.
Para Michael França e Fillipi Nascimento, nascer em ambientes desfavorecidos não apenas diminui as possibilidades de ascensão individual, mas também cria um ciclo vicioso em que que o potencial de grande parte da população brasileira fica subutilizado. Quem perde é a nação como um todo.
Apesar dos problemas, os autores são otimistas quanto ao futuro. Para eles, a sociedade está, aos poucos, desafiando sua rígida estratificação social. As “filhas dos porteiros”, muitas vezes invisíveis nas narrativas tradicionais, estão ressignificando os valores da sociedade brasileira, que tem uma forte herança de exclusão e racismo. A mudança, segundo eles, passa pela consciência desses mecanismos estruturais que alimentam as desigualdades e travam a mobilidade social. Uma consciência que, com certeza, o livro ajuda a ampliar. Deveria ser leitura obrigatória nas escolas.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos. Siga a colunista no Instagram.