A Assembleia Geral das Nações Unidas se reunirá nesta terça-feira, 23, em um contexto de divisões profundas: além das duas grandes guerras, em Gaza e na Ucrânia, e o recentes reconhecimentos do Estado da Palestina, atraindo a ira de Israel, o encontro ocorre no pior momento das relações entre Estados Unidos e Brasil. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) estará no mesmo recinto, pela primeira vez desde o tarifaço, que o seu homólogo dos EUA, Donald Trump, que acusa o governo brasileiro de liderar uma “caça às bruxas” ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Em todos os cantos da sede da ONU, em Nova York, o clima de tensão poderá ser sentido.
A reunião se estende até a próxima segunda-feira, 29, com tema de debate geral “Melhor juntos: 80 anos e mais pela paz, pelo desenvolvimento e pelos direitos humanos”. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, abrirá a reunião. Em seguida, a ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, começará os trabalhos, já que Berlim ocupa a presidência da Assembleia Geral. O Brasil será o primeiro país a discursar, uma tradição de longa data que remonta aos primeiros anos da ONU.
Em sua fala, Lula deve mandar mensagens críticas ao Estados Unidos, assim como tem feito em entrevistas a jornais americanos, e defender a soberania brasileira. O petista também tem sido duro nas condenações a Israel, acusado por ele de cometer “genocídio” em Gaza. Ele deve abordar, ainda, a guerra na Ucrânia e a questão das mudanças climáticas — Belém, no Pará, receberá a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP20) em novembro. Em meio à tensão, virão os EUA, o segundo a discursar por ser o país sede da cúpula.
Já em Nova York, como preparativo para a Assembleia, Lula participou na segunda-feira da Conferência Internacional de Alto Nível para a Solução Pacífica da Questão da Palestina e a Implementação da Solução de Dois Estados. Na terça, após a Assembleia Geral, o petista comandará uma reunião sobre o Fundo de Florestas Tropicais para Sempre (TFFF, na sigla em inglês), proposta de financiamento climático que deve ser lançada na COP30. Encerrando as participações, ele marcará presença na 2ª Reunião “Em Defesa da Democracia, Combatendo Extremismos”.
Lula e Trump
A relação entre Trump e Lula se deteriora dia após dia. O republicano acusa o governo brasileiro e o Supremo Tribunal Federal (STF) de liderar uma “caça às bruxas” a Bolsonaro, recentemente condenado a 27 anos e três meses de prisão pelo envolvimento na trama golpista. O ex-presidente foi considerado culpado por liderar ou integrar organização criminosa armada, atentar violentamente contra o Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado por violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado.
Em retaliação, o líder americano taxou em 50% os produtos brasileiros; sancionou o ministro Alexandre de Moraes, do STF, e sua esposa, Viviane Barci de Moraes, através da Lei Magnitisky, usada para punir estrangeiros acusados de violações graves de direitos humanos ou de corrupção em larga escala; e cancelou o visto de vários membros do STF, com exceção de Kassio Nunes Marques e André Mendonça, indicados por Bolsonaro, bem como Luiz Fux, que votou contra a condenação do ex-presidente.
Nesta segunda, poucas horas antes do início dos trabalhos na Assembleia, o governo brasileiro disse que sanções são uma “tentativa de ingerência indevida em assuntos internos brasileiros”, feita a partir de “inverdades”, e que “o Brasil não se curvará a mais essa agressão”.
“O recurso do governo Trump à Lei Magnitsky, no caso do Brasil, uma democracia que se defendeu, com êxito, de uma tentativa de golpe de Estado, não apenas é uma ofensa aos 201 anos de amizade entre os dois países. Representa também a politização e o desvirtuamento na aplicação da lei, como já manifestado recentemente por um de seus co-autores, o deputado James McGovern”, diz o texto publicado pelo Itamaraty.
Em entrevista ao jornal americano The New York Times em agosto, Lula definiu como “vergonhoso” o método de Trump de lançar ameaças a outros países através das redes sociais, criticando: “Quando você tem um desentendimento comercial, um desentendimento político, você pega o telefone, marca uma reunião, conversa e tenta resolver o problema. O que você não faz é cobrar impostos e dar um ultimato”. Embora tenha afirmado que o Brasil estava a aberto a negociações, destacou que não o faria “como se fosse um país pequeno contra um país grande”.
O petista voltou a criticar o tarifaço de Trump em um artigo de opinião publicado no NYT neste domingo, 14. Com o título “A democracia e a soberania brasileiras são inegociáveis”, Lula disse que decidiu escrever o ensaio para “estabelecer um diálogo aberto e franco com o presidente dos Estados Unidos”. No texto, ele salientou que “recorrer a ações unilaterais contra Estados individuais é prescrever o remédio errado” e que “o multilateralismo oferece soluções mais justas e equilibradas”.
O que mais pode entrar em pauta
O cenário internacional tem sido intenso nas últimas semanas. Polônia e Romênia tiveram seus espaços aéreos violados por drones russos, marcando a primeira vez que um dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), principal aliança militar ocidental, reagiu a uma ofensiva de Moscou. Israel, na contramão do direito internacional, avança no plano de assentamentos na Cisjordânia, além de ter engatado no plano de tomar controle total da Cidade de Gaza, principal conglomerado urbano do enclave.
A guerra na Ucrânia também deve ser alvo de discussão. O conflito avança para o seu quarto ano sem sinais de trégua. Nem Kiev, nem Moscou parecem dispostos a flexibilizar as reivindicações. A Rússia exige que a Ucrânia ceda 20% do seu território, incluindo as regiões de Luhansk e Donetsk, abandone a pretensão de aderir à Otan, principal aliança militar ocidental. Além disso, Putin quer que a Ucrânia se desmilitarize, uma ideia rejeitada pelo presidente ucraniano, Voodymyr Zelensky, que insiste em “um forte exército ucraniano” como uma exigência imutável. Ele também nega abrir mão de parte do país e defende o princípio da soberania, sendo apoiado por aliados europeus.
Ainda no contexto de hostilidades, os países devem abordar a guerra e a catástrofe humanitária na Faixa de Gaza. Espera-se que as delegações apelem por um cessar-fogo imediato e sustentado — um pedido rejeitado por Israel, que reclama o direito à autodefesa e insiste na libertação de todos os reféns e no extermínio do Hamas como condições para o fim do conflito, enquanto o grupo palestino radical afirma que só largará as armas quando as forças israelenses baterem em retirada do território. Mais de 65 mil palestinos foram mortos — entre eles, 440 por fome, incluindo 144 crianças — desde o início do confronto, em 7 de outubro de 2023.
Em meio à escalada de violência, acredita-se que a França seguirá os passos do Reino Unido, Canadá, Austrália e Portugal no reconhecimento do Estado da Palestina na Assembleia Geral, como prometido pelo presidente Emmanuel Macron. Os quatro países anunciaram neste domingo, 21, às vésperas da reunião em Nova York, a validação do Estado palestino como um caminho para a solução de dois Estados. Mais de 140 países dos 193 países-membros da ONU, incluindo o Brasil, reconhecem a Palestina. A medida é condenada por Israel e pelos EUA — a missão americana, inclusive, vetou as últimas resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre Gaza. É apenas uma das muitas discordâncias a entrarem em pauta no encontro de alto nível.