FLORIANÓPOLIS* – Foi em 1992 que Ana Gales iniciou sua trajetória na infectologia, na Universidade Estadual Paulista (Unifesp). A escolha pela especialidade foi guiada por necessidades intrínsecas à área: enxergar o paciente de forma integral, lidar com doenças capazes de afetar múltiplos órgãos e acompanhar condições que, na época, apresentavam desfechos decisivos — de cura ou morte. Desde então, a médica testemunhou transformações que marcaram a história da medicina. Viu o vírus da hepatite C ser inicialmente classificado como “nem A nem B” e acompanhou a chegada dos primeiros medicamentos contra a Aids no Brasil.
“Eu vivi todas as fases das terapias antirretrovirais. Participei de um dos primeiros grandes estudos, o MK-028, que avaliava a atividade do indinavir. Naquela época, só havia o AZT, e a maioria dos pacientes ainda morria. Foi quando vimos a mudança do tratamento acontecer diante dos nossos olhos”, recorda.
Antes disso, porém, um desvio de rota a levou a um tema quase desconhecido nos anos 90: a resistência antimicrobiana — quando microrganismos, como as bactérias, deixam de responder aos antibióticos, suas principais armas de combate. Algo sério, que pode inclusive levar à morte. O interesse surgiu ao lado do infectologista Antônio Carlos Pereira, no Hospital São Paulo, criador de um programa pioneiro de controle de uso desses medicamentos.
“Por orientação dele, toda vez que pedíamos antibiótico para um paciente, tínhamos que preencher um formulário explicando motivo, dose e justificativa. Depois, discutíamos cada caso em grupo. A ideia era nos ensinar a prescrever de forma responsável”, conta.
Foi a partir dessa dinâmica que a resistência aos antibióticos entrou de vez na história. Ela recorda a primeira vez que viu um antibiograma — exame que testa a sensibilidade de bactérias a esses medicamentos— mostrando uma bactéria produtora de uma enzima chamada beta-lactamase de espectro estendido. Na prática, isso significava que o microrganismo era resistente a um grupo inteiro de antibióticos bastante usados, as cefalosporinas. “Olhei o resultado e pensei: ‘Isso só pode estar errado’. Parecia impossível uma bactéria ser resistente a tantas possibilidades.”
Na época, o hospital começava a adotar métodos semiautomatizados para realizar o exame, o que aumentou a suspeita de falha técnica. “Comentei com colegas, e muitos disseram: ‘Deve ser problema do equipamento’. Mas eu, teimosa, disse: ‘Não, não é isso. Tenho que entender isso aqui melhor’. E esse foi o caminho que decidi seguir.”
Décadas depois, o que antes parecia um achado raro se tornou um problema em grande escala: estima-se que 48 mil pessoas morram por ano no Brasil devido a infecções resistentes a antibióticos, número que pode chegar a 1,2 milhão até 2050. ‘São apenas estimativas, e o cenário pode ser ainda pior, já que não há uma base de dados unificada sobre mortes por essa causa, algo que precisa ser revisto’, diz Gales.
Parte disso tem a ver com o uso inadequado desses remédios, seja por prescrições erradas ou pelo uso incorreto pelos próprios pacientes, que se automedicam. Um levantamento recente, feito em mais de 100 hospitais brasileiros pelo Instituto Qualisa de Gestão (IQG) e lançado pela Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), aponta que um em cada cinco hospitais não ajusta corretamente a dosagem desses medicamentos. Além disso, 87,7% das instituições, públicas e privadas, ainda recorrem à chamada prescrição empírica — quando médicos escolhem o tratamento por tentativa e erro, sem base em exames específicos.
Para Gales, a resistência aos antibióticos é um problema que não pode mais ser tratado como “silencioso”. “Muitos comparam com uma pandemia, mas dizem que seria como um fogo pequeno, queimando todos os dias sem que ninguém perceba. Eu não concordo. Qualquer médico que trabalha em hospital sabe muito bem o que significa lidar com uma infecção resistente: ela prolonga a internação, aumenta o risco de transmissão, eleva a mortalidade e deixa sequelas. Quem vive isso no dia a dia, sabe muito bem que estamos diante de uma espécie de pandemia, mas nada silenciosa.”
Durante o 26º Congresso de Infectologia, em Florianópolis, Santa Catarina, Gales cumpriu sua missão de alertar sobre o assunto. Em conversa com a VEJA, ela detalhou o que realmente está por trás dessa “epidemia nada silenciosa” e explicou como podemos nos munir. Abaixo, os principais trechos.
Na prática clínica, o que mudou em relação aos antibióticos de 30 anos atrás e os que temos hoje?
Ah, mudou muito… Antigamente, quando um antibiótico era lançado, a detecção de resistência era feita tempos depois. Hoje, muitas vezes o medicamento nem foi lançado e a bactéria já possui mecanismos de resistência. Para você ter uma ideia, quando eu era residente, uma paciente jovem com uma infecção urinária simples era tratada com Sulfametoxazol-Trimetoprima. Se a infecção era mais grave, atingindo o rim, usávamos cefalosporinas de primeira geração. Hoje, a resistência está tão alta que essas opções praticamente deixaram de existir. Em 20 ou 30 anos, perdemos essas medicações importantes.
Naquela época, também existiam dois antibióticos muito potentes, chamados carbapenêmicos, usados em infecções hospitalares graves. Chegávamos a discutir se valia a pena testá-los no laboratório, porque a resistência era raríssima. Hoje, infelizmente, já encontramos bactérias que não respondem nem a eles. Ou seja, em poucas décadas, várias armas importantes simplesmente desapareceram.
Isso não quer dizer que as pessoas estão totalmente sem opções, ainda existem antibióticos que funcionam, mas o leque de escolhas eficazes diminuiu muito. Na prática, isso significa tratamentos mais caros, mais tóxicos e com mais efeitos colaterais, além de internamentos mais longos e risco maior de complicações.
E o que exatamente contribui pra isso, para que essas bactérias se tornem resistentes aos tratamentos?
A resistência das bactérias aos antibióticos acontece basicamente por uma combinação de evolução natural e o “uso errado” desses remédios.
Funciona mais ou menos assim: toda vez que uma bactéria encontra um antibiótico, a maioria morre. Mas algumas, por sorte — ou azar nosso — têm uma mudança genética que permite sobreviver. Essas sobreviventes se multiplicam e passam essa característica adiante. Agora, se a gente soma a isso o uso indiscriminado de antibióticos — seja porque o paciente não completou o tratamento ou porque tomou sem precisar — o problema fica ainda pior.
Agora… Muita gente acha que só o uso errado de antibiótico causa isso, e realmente ele é uma das principais causas de seleção de resistência. Mas tem outros fatores também. Por exemplo, até o uso de alguns antidepressivos ou até de antissépticos pode, de certa forma, “ensinar” a bactéria a se proteger. Isso acontece por um mecanismo chamado bomba de fluxo: a bactéria consegue jogar para fora da célula compostos que ela entende como ‘tóxicos’ para ela — e isso pode incluir desde um simples antisséptico até o antibiótico.
Ou seja, as bactérias estão sempre reagindo ao que a gente faz. Parte dessa adaptação é inevitável, mas dá pra reduzir muito o problema com medidas simples: prescrever antibiótico só quando realmente precisa, pedir exames antes de sair tratando e, principalmente, criar consciência de que antibiótico não é bala mágica e não deve ser usado para qualquer coisa.
Algo um pouco complicado de reverter num país onde é comum ter a tal da ‘farmacinha’ em casa…
Sim… Tem muita gente que chega ao consultório falando: “Ah, eu já peguei uma receita e guardo o antibiótico em casa, caso precise.” E as pessoas tomam para coisas variadas e que muitas não fazem sentido, como resfriados. O problema é que isso não é adequado. Mas é real. As pessoas fazem isso e até se orgulham de ter esse estoque.
Uma coisa que eu insisto é que a população precisa entender que o antibiótico é um recurso importante que nós temos, mas que é finito e não infinito. A gente precisa usar com cautela. Só que não é fácil fazer as pessoas compreenderem isso. Por exemplo, quando alguém tem um infarto, a pessoa entende: “Teve dor no peito, foi para o hospital, e se não tratasse, poderia morrer.” Se dá um derrame, também entende que ou se sobrevive com sequelas ou morre.
Mas quando se trata de uma infecção resistente, muita gente não entende a gravidade. A pessoa não imagina que vai ficar mais tempo doente, que pode ter que ser internada, se afastar do trabalho, desenvolver complicações e até morrer por causa da infecção.
Quantas vezes a gente não vê alguém internado por uma infecção urinária, que evolui para pielonefrite [infecção dos rins] e depois para infecção generalizada, e acaba morrendo? Tudo porque o antibiótico não deu conta.
Em 2010, a Anvisa decidiu que a receita de antibióticos deveria ser retida. Isso ajudou de alguma forma?
Sim, com certeza ajudou. Mas eu ainda sinto que precisamos de mais vigilância. Tem estudos mostrando que, em algumas regiões do Brasil, a medida funcionou muito bem. Por exemplo, se você vai a uma farmácia de grande rede, eles não vendem antibióticos sem receita.
Por outro lado, se você vai a uma farmácia de bairro menor, muitas vezes ainda vendem sem pedir a receita. Então, a lei ajuda, mas precisamos garantir que seja cumprida de um jeito mais uniforme. Fora que também existem muitos mercados paralelos por aí…
E por que muitos médicos acabam prescrevendo antibióticos mesmo quando não são necessários?
Muitas vezes isso acontece por pura pressão. O médico está atendendo uma fila enorme de pacientes, não tem tempo para examinar direito ou conversar como gostaria. Às vezes ele não tem certeza se a infecção é viral ou bacteriana e, para não correr risco, acaba receitando o antibiótico “por precaução”.
Além disso, existe a pressão do próprio paciente. Tem gente que chega dizendo: “Eu vim pegar um antibiótico” ou “Quero fazer um exame e sair com a medicação”. Nessas situações, o médico pode se sentir inseguro para dizer não, especialmente se não tiver confiança de que consegue diagnosticar a infecção com precisão – algo que, de fato, é muito difícil de fazer. Então, é uma combinação de fatores: pressão do sistema, falta de tempo, expectativas do paciente e insegurança profissional. É uma bola de neve.
O que poderia colaborar com decisões mais seguras na hora de prescrever antibióticos, na sua opinião?
Uma das coisas mais importantes seria ter testes rápidos e confiáveis disponíveis na prática diária, especialmente em pronto-atendimentos. Por exemplo, se existisse um exame que dissesse na hora: “Essa criança tem gripe” ou “Essa dor de garganta é causada por bactéria ou não”, ajudaria muito na decisão.
Hoje, muitas vezes o médico ainda depende do julgamento clínico, que nem sempre é perfeito.
E isso sairia caro para o sistema?
Olha, eu não gosto muito de usar a palavra “caro”, porque depende do ponto de vista. Claro, se você olhar para um teste e ele custar, sei lá, mil reais, parece muito — quase um salário mínimo. Mas a questão é: quanto vale uma vida humana? E quanto você pode economizar evitando o uso desnecessário de antibióticos?
A ideia é pensar em custo-efetividade. Quanto mais um teste for usado, maior a produção, e mais tende a cair o preço. Então não dá para olhar só para o valor isolado. É claro que o teste tem um custo, mas a gente precisa buscar formas de torná-lo mais acessível e regulamentar isso.
E pensa bem: se um tratamento custa R$ 7.000 por sete dias, mas estamos falando de uma doença que pode ter 30% de mortalidade, você não acha que vale o investimento? É um debate importante, porque precisamos equilibrar custo e benefício real para salvar vidas. Essa, aliás, talvez seja uma das minhas grandes lutas hoje.
E enquanto sociedade, como é possível colaborar?
Olha, além de ter cuidado com o uso de antibióticos e prestar atenção naquela famosa ‘farmacinha’ em casa, existem outras atitudes que fazem muita diferença. Por exemplo, a vacinação. Quando a população está vacinada, há menos complicações. Eu sei que muita gente pensa: “Ah, Ana, é só gripe.”
Mas olha só: se você pega gripe, há uma boa chance de isso evoluir para uma infecção bacteriana. Se houver menos gripe circulando, as complicações diminuem e, consequentemente, o uso de antibióticos também cai.
No hospital, a lógica é a mesma. Boas práticas de prevenção e controle da disseminação de bactérias — como higienizar bem as mãos, manter o ambiente limpo e isolar pacientes infectados ou colonizados — ajudam muito a reduzir as infecções.
Então, no Brasil, é claro que a prescrição e o uso inadequado de antimicrobianos ainda é um problema sério. Mas eu diria que a prevenção também tem um peso enorme. Por isso, cuidar da vacinação é mais uma missão importante que todos nós podemos abraçar.
A repórter viajou a convite da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI)