counter Novas pesquisas investigam se certos tipos de comida realmente podem viciar – Forsething

Novas pesquisas investigam se certos tipos de comida realmente podem viciar

Com quatro décadas de carreira, a psicóloga paulistana Fátima Vasques, do Grupo de Dependência de Comida do Instituto de Psiquiatria da USP, começou a atender, nos últimos anos, a um perfil diferente de pacientes: eles se dizem “viciados em comida”. A expressão, com forte apelo popular, protagoniza um acalorado debate científico. Afinal, alguns alimentos teriam a capacidade de propiciar dependência, a exemplo do que ocorre com cigarro, álcool e drogas ilícitas? Embora “vício em comida” não conste como um diagnóstico médico, o assunto esquentou com a publicação recente de um experimento, baseado em exames sofisticados, com uma das bebidas mais irresistíveis, o milk-shake. Os pesquisadores ligados ao National Institutes of Health (NIH), a principal agência federal dos Estados Unidos para a pesquisa biomédica e de saúde, testaram em voluntários se a ingestão provocaria, no cérebro, explosão na liberação de dopamina, a substância por trás do prazer e associada à dependência química. O resultado chocou parte dos experts e… dos fãs de carteirinha da delícia. O milk-shake não deu um banho viciante de dopamina.

POR OUTRO LADO - Ultraprocessados: formulação que induz a excessos
POR OUTRO LADO - Ultraprocessados: formulação que induz a excessosMarcio Pannunzio/Fotoarena/.

A história, é claro, não se encerra com esse estudo. Pouco depois da divulgação, outro grupo de cientistas correu para publicar um artigo declarando ser uma “omissão perigosa” descartar a hipótese de que ultraprocessados — categoria que abrange industrializados cheios de açúcar e aditivos — possam ser viciantes. A trama da discussão é, de fato, densa. Se alguns alimentos induzem a repetição, é comum que abalos na saúde mental abram as portas a acessos de gula. “Não é o vício por comida em si. Ele pode ser apenas consequência de ansiedade ou depressão”, diz a psicóloga Fátima Vasques. Apesar de a ciência ainda não ter batido o martelo sobre a existência de uma dependência específica por comida, os profissionais já dispõem de um diagnóstico para aquelas pessoas que são vítimas de ataques intempestivos de comilança — a compulsão alimentar. Enquanto o “vício” seria marcado pelo beliscar constante, de preferência do mesmo produto, na compulsão há ingestão exagerada de diversos alimentos. Não raro, o que desce goela abaixo são itens hiperpalatáveis, como os tais ultraprocessados — refrigerantes, salgadinhos, massas prontas… A combinação de açúcar, gordura e sal pode fazer uma pessoa fragilizada ter ainda mais dificuldade de resistir.

Uma das maiores críticas à caracterização de um vício em comida, porém, é que, ao contrário de drogas em geral, ela não atende a critérios clássicos, como abstinência e tolerância. O efeito seria, assim, mais psicológico do que químico. “Muitos alimentos podem ter esse aspecto de dependência pela carga emocional que carregam para algumas pessoas”, diz o endocrinologista Bruno Halpern, presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica. “Elas sofrem para se controlar, sentem culpa depois, mas o processo é diferente do que ocorre com as drogas.” Uma situação peculiar envolve o café: tem gente que se sente mal quando não toma justamente pela carência da cafeína e de sua ação em mecanismos cerebrais.

arte vício comida

Continua após a publicidade

Talvez mais relevante do que a via neural que propicia a perda de controle sobre um alimento seja todo o contexto envolvido. Um contexto em que a oferta de ultraprocessados, cujo consumo exagerado é associado a ganho de peso e doenças crônicas, se soma a outros aspectos. “Apesar de não acreditar em um vício por comida hiperpalatável, me parece claro que o descontrole diante desses produtos resulta da soma de fatores psicológicos, sociais e ambientais”, afirma o nutricionista Mauro Proença, ligado ao Instituto Questão de Ciência. A neurociência ainda tem muito o que desvelar sobre a anatomia da gula e dos vícios. Já não resta dúvida, porém, sobre as consequências do abuso. Para a mente e o corpo.

Publicado em VEJA de 19 de setembro de 2025, edição nº 2962

Publicidade

About admin