counter “Trump é um catalisador do comércio”, diz ex-negociadora argentina – Forsething

“Trump é um catalisador do comércio”, diz ex-negociadora argentina

O acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia representa uma das negociações mais longas da história do comércio internacional, com mais de 25 anos de conversas. Fechado em 2019, o pacto ainda aguarda ratificação pelos parlamentos dos países envolvidos, enquanto o cenário geopolítico mundial se transforma radicalmente. A guerra na Ucrânia, a ascensão da China, o protecionismo americano e as mudanças climáticas criaram novas urgências que tornam esse acordo ainda mais estratégico para ambos os blocos. Marisa Bircher, ex-secretária de Comércio Exterior da Argentina em 2018 e 2019 (e, portanto, uma das negociadoras do acordo pelo lado do Mercosul), analisa na entrevista a seguir as perspectivas de ratificação, os benefícios para cada bloco e os desafios de implementação. “Este acordo tem mais conotação política que comercial para a União Europeia, enquanto para o Mercosul representa a institucionalização do comércio exterior”, diz Bircher, que também foi secretária de Mercados Agroindustriais da Argentina entre 2015 e 2018 e atualmente atua como consultora independente de negociações comerciais. Ela afirma que a desordem global provocada pelo presidente americano ao iniciar sua guerra tarifária tem um efeito positivo: “Trump é um catalisador do comércio exterior, porque rompeu a lentidão de todos os países nas negociações.”

Do ponto de vista da União Europeia, os benefícios de um acordo são mais políticos que econômicos?

O acordo tem mais conotação política do que comercial em termos da importância de uma aliança com a América Latina, neste caso com os países do Mercosul, em um contexto global tão convulsionado e fragmentado. A União Europeia entendeu a importância desse acordo também como uma forma de ocupar um espaço de investimentos no qual China e Estados Unidos já têm uma forte penetração. A marca do presidente americano Donald Trump nessa reta final do acordo também é muito importante. No caso da Argentina, vimos um interesse para além do comércio exterior, principalmente dos investimentos estratégicos que os americanos querem realizar por aqui. São muitos sinais, muitos alertas que vinham se acumulando e a União Europeia talvez não percebia, e que agora se tornaram claros a ponto de dar impulso para avançar com um acordo que demorou mais de 25 anos para ser negociado. A necessidade de realizar a transição energética para 2030, um objetivo difícil de ser alcançado, também acelera o desejo de fazer investimentos europeus principalmente na Argentina e no Brasil em matéria de energia, petróleo, mineração e hidrogênio verde — insumos urgentes para uma região impactada pelos efeitos da guerra entre Ucrânia e Rússia. O que antes era uma mensagem para o mundo em prol do multilateralismo consolidou-se em interesses geopolíticos e na necessidade de avançar em investimentos em áreas estratégicas.

E do ponto de vista do Mercosul?

Visto do lado do Mercosul, o principal objetivo é a institucionalização do comércio exterior. Somos quatro países com dificuldade ainda de ver a importância de atuarmos juntos. Seguimos nos enxergando como países individuais, politizando o espaço comum, priorizando a ideologia esquerda-direita. Não conseguimos ver que, juntos, somos o maior exportador mundial de alimentos. Esse acordo com a Europa nos permite dar um salto institucional em um comércio exterior em geral burocrático, principalmente no Brasil e na Argentina. Um comércio exterior que não se abriu ao mundo como poderia. Somos o bloco mais fechado e com a tarifa mais alta do mundo, com uma média de 12%. O acordo com a União Europeia é bastante equilibrado do ponto de vista comercial, e muito necessário do ponto de vista institucional e da harmonização interna.

Como a senhora avalia o impacto da resistência francesa e dos setores agrícolas europeus no processo de aprovação do acordo com o Mercosul?

Este acordo não tem ameaças agrícolas. Alguns presidentes o utilizam como recurso político interno para falar com seus eleitores, mas claramente não é um acordo que põe em risco o comércio agrícola. É um pacto muito cuidadoso com os setores sensíveis, como o setor da carne. Foi definida uma cota de importação de quase 100.000 toneladas de carne, que não põe em risco nenhum o setor de carne europeu, ou mesmo o setor de laticínios. Aceitamos as indicações geográficas de produtos que a Itália pediu, sendo a Argentina o principal país afetado. Do nosso ponto de vista, temos cestas de produtos cujas tarifas vão ser desgravadas (reduzidas até chegar a zero) ao longo de 10 anos, 15 anos. Teremos o benefício de poder exportar produtos com valor agregado, acompanhado do desafio para as nossas empresas de melhorar em eficiência, tecnologia e qualidade. A União Europeia não é uma ameaça em preços, mas será um desafio em qualidade.

Por que a Argentina é a mais impactada pelas regras de indicações geográficas?

Porque temos maior descendência europeia — muita descendência italiana, alemã, espanhola. No momento de negociar indicações geográficas, as conversas foram equilibradas porque muitos dos produtos alimentícios daqui são praticamente os mesmos de espanhóis e italianos. Em alguns pontos cedemos, em outros não — para não prejudicar indústrias alimentícias que estão há décadas na Argentina, e que foram impulsionadas por imigrantes europeus.

Que setores do Mercosul, particularmente da Argentina, seriam os mais beneficiados?

O setor de alimentos é relevante no acordo. Somos exportadores de frutas frescas, carne, arroz, produtos da pesca, vinhos. Toda a agroindústria argentina terá benefícios. Um dado relevante: no caso da Argentina, todas as províncias aumentariam suas exportações com este acordo. Claramente haverá províncias mais beneficiadas que outras, não por motivos políticos, mas porque têm oferta exportável mais demandada pelos europeus. É um acordo que nos dará crescimento nas exportações, mas não exorbitante ou explosivo. Vai nos consolidar em um mercado que já é um sócio comercial histórico do Mercosul, mas onde hoje encontramos de 7% a 14% de tarifas — com o acordo, essas taxas serão desmontadas. O grande tema dentro desse acordo é o Brasil. O Brasil é o mercado mais atrativo para os europeus, principalmente pela densidade geográfica, por ser uma das dez maiores economias do mundo, e por ser um mercado fechado. O acordo dará a chave à União Europeia para uma aliança muito interessante com nosso país vizinho.

Como a senhora avalia as políticas de liberalização comercial implementadas pelo presidente argentino Javier Milei?

A simplificação e desburocratização que vem sendo levada a cabo pelo governo do presidente Milei é muito positiva para as empresas da Argentina. O comércio argentino hoje enfrenta muitas barreiras para exportar mais e melhor. Não se trata apenas da ausência de acordos de livre comércio do Mercosul. Há o tema de competitividade interna, com desafios tributários, logísticos, de acesso à tecnologia e de acesso ao crédito. A simplificação do comércio é significativa. Também são positivas as políticas de Milei para liberalização do comércio exterior, redução de tarifas e eliminação da burocracia interna.

Como a liberalização do comércio exterior argentino pode ser compatível com os compromissos multilaterais do Mercosul?

A Argentina não pode assinar tratados de livre comércio de maneira unilateral. Dentro do bloco, seguimos respeitando a cláusula de consenso — internamente deve haver uma consulta para poder avançar com alguns países, pois temos uma tarifa externa comum que tem que ser negociada dentro do bloco. O que o governo argentino fez, de forma criativa, foi utilizar um mecanismo de diálogo preexistente ao Mercosul para avançar na cooperação com Estados Unidos. Não se trata de uma redução de tarifas para todos os produtos, apenas para uma seleção de itens enquadrados na lista de exceções do Mercosul. Serão poucos produtos, mas acredito que terá um bom impacto em matéria de promoção de investimentos em setores estratégicos e um acesso privilegiado de produtos argentinos aos Estados Unidos que hoje não temos.

Não existe risco de fragmentação do Mercosul por conta desses planos de Milei com Estados Unidos?

O mais importante é que haja diálogo político interno no Mercosul. Isso existe no nível dos chanceleres. Há uma boa interação diplomática dentro do bloco, mas a realidade é que alguns presidentes não têm conseguido ter diálogo político— os presidentes não conversam e isso faz com que o Mercosul siga sendo um espaço desperdiçado. Poderia ter muito mais impulso se pudesse existir um consenso político no mais alto nível, com a escolha de sócios estratégicos sem viés político, mas com uma visão comercial que beneficie o setor privado. Enquanto seguir prevalecendo a ideologia, o Mercosul não vai funcionar.

Enquanto Trump continuar priorizando as relações bilaterais baseadas em afinidades políticas, como a que ele tem com Milei, as negociações com o Brasil seguirão complicadas?

Hoje o que prevalece e impulsiona o presidente Trump — vamos ser realistas — é que o comércio global está totalmente bilateralizado. Os esquemas multilaterais hoje não estão tendo o peso que tinham antes, nem entre os blocos de países, nem muito menos na Organização Mundial de Comércio (OMC). Trump propõe ao mundo uma negociação um a um de temas concretos, de produtos específicos e apoiados sobre uma visão política em comum. Se não pensamos da mesma forma, essa negociação é muito mais difícil, e acredito que é isso que o Brasil está enfrentando com o governo dos Estados Unidos. Me parece que a estratégia de Trump é pressionar o Brasil para depois se sentar para negociar — vimos isso com a União Europeia, a China e o Japão .Não podemos negar a importância do Brasil no comércio internacional. Para a União Europeia é o segundo fornecedor de alimentos. São duas potências que estão sendo colocadas à prova do ponto de vista político na relação com os Estados Unidos.

Como a senhora avalia a relação comercial entre Brasil e Argentina atualmente?

É uma relação que foi se debilitando com o passar do tempo. Poderia ser muito mais estratégica e proveitosa para os dois países. O Brasil nessas últimas décadas começou a olhar para o mundo como uma oportunidade. Sem uma aliança com a Argentina, saiu para conquistar mercados, também como consequência de seu crescimento e competitividade interna. A Argentina, ainda que siga vendo o Brasil como um sócio, ainda não entendeu a dimensão do que temos ao nosso lado. Vejo muitas pequenas e médias empresas argentinas que exportam ao Brasil e mas que enxergam apenas o Sul do país. Não conhecem um mercado muito maior, com muitas oportunidades, no resto do país. Não aproveitamos essa parceria Argentina-Brasil da maneira que deveríamos.

As tarifas americanas sobre a carne brasileira beneficiam a Argentina no mercado americano?

A Argentina vê com muito entusiasmo o mercado americano, de fato vem crescendo suas exportações para lá. O Brasil é um exportador de carne muito mais agressivo. De qualquer forma, a produção de carne que o Brasil não vai poder exportar a curto prazo acaba sendo um problema para a Argentina. Torna-se uma ameaça para nós em outros mercados aonde essa produção vai ser escoada. Por isso, não temos motivos, na Argentina, para comemorar a tarifa americana de 50% sobre a carne brasileira. Sabemos perfeitamente que essa produção vai para outros países, como a China, competindo com o nosso produto.

O protecionismo americano acelera a necessidade do acordo Mercosul-União Europeia?

Acredito que esta segunda gestão de Trump é um catalisador do comércio exterior, pelo bem ou pelo mal, porque rompeu os esquemas de diálogo tradicionais, rompeu a lentidão de todos os países nas negociações. Em questão de meses, a Argentina está conseguindo avançar em negociações com outros países o que com a União Europeia levamos 30 anos para conseguir. O mesmo vai acontecer com Brasil. Trump é um catalisador que reacomoda o comércio mundial e define novas necessidades e prioridades comerciais. Para a União Europeia — diante de sua relação atual com os Estados Unidos e com a Rússia — faz sentido agora ser sócia comercial da China, com quem sempre teve uma relação tensa, porque os dois lados se deram conta de que precisam estar mais juntos para fazer frente aos Estados Unidos. E é uma realidade que obviamente acelera esse interesse que os europeus têm pelo Mercosul, pela América Latina. Trump está gerando uma desordem comercial, e os países passaram a ter um estímulo para serem mais rápidos para se adaptar e restabelecer vínculos comerciais.

Esse acordo com a UE, se ratificado, pode servir como modelo de integração multilateral para que o Mercosul negocie outros pactos comerciais?

Sim. Mas o acordo Mercosul-UE precisa ser ratificado o quanto antes. Houve modificações nesses últimos anos, mas o acordo ainda tem o feitio de quando o fechamos, em 2019. Não havia pandemia, não havia guerra, não havia o atual conflito no Oriente Médio e não havia o contexto atual das políticas tarifárias dos Estados Unidos. Todas essas mudanças aceleraram urgências e necessidades estratégicas que nesse momento não estavam contempladas. Por outro lado, o Mercosul precisaria redefinir sua tarifa externa comum, que é muito alta e afeta a competitividade das empresas exportadoras do bloco. Enquanto tivermos tarifas que chegam a 30% ou 35%, não vamos conseguir que nossas empresas locais sejam competitivas em matéria de comércio exterior. Temos que nos adaptar a uma realidade comercial que o Mercosul ainda não consegue enxergar.

Publicidade

About admin