FLORIANÓPOLIS* – Nancy Bellei é infectologista há 33 anos. Formada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde atualmente coordena a pós-graduação em viroses respiratórias, acompanhou de perto momentos que mudaram o curso da saúde pública: a chegada do primeiro antirretroviral contra o HIV, a epidemia de Zika, a pandemia de gripe suína (H1N1) e, mais recentemente, os danos provocados pela covid-19.
Essa expertise lhe conferiu algo raro: a capacidade de enxergar o que ainda se esboça no horizonte. Não à toa, quando a pandemia de coronavírus começava a desenhar sua história, no final de 2019, Nancy já resguardava em seu laboratório testes previamente prontos para algo que, mesmo com sua capacidade de imaginar cenários, a imaginação não deu conta, tamanho nível catastrófico — de 2020 a 2025, foram quase 1 milhão de mortes registradas no Brasil. “Quando começaram as notícias de casos na China, em dezembro de 2019, eu disse para um colega: ‘isso parece com o SARS-CoV-1’, versão do coronavírus que ele já havia estudado anos atrás. No mesmo dia, montamos o teste no laboratório”, conta.
A infectologista também viveu episódios que marcaram a memória coletiva da pandemia: colegas de trabalho que morreram, famílias inteiras atingidas e estudantes de pós-graduação que deixaram teses de lado, sem voltar para a casa dos pais, para se dedicar exclusivamente ao enfrentamento do vírus. “Lembro de laudar exames e me deparar com sobrenomes da mesma família. Eram pais, tios, avós. E, quase sempre, um ou outro sobrevivia, mas precisava lidar com a dor da perda”, conta. Também viu de perto a escassez de leitos e respiradores, equipes transformando salas improvisadas em unidades de internação e a falta de insumos básicos, como máscaras. “Chegamos a usar a mesma N95 por quinze dias. Simplesmente não havia. A única saída era deixá-la ao sol, seguir usando e tentar não ser tomado pelo medo.”
Passar por essas dificuldades, um tanto técnicas, mas também humanas, lhe rendeu o título de consultora científica do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o enfrentamento da influenza e covid-19. Hoje, Nancy insiste na necessidade de revisitar o passado para nos preparar para futuras pandemias, um risco cada vez mais concreto. E lamenta os baixos índices de vacinação, uma das principais armas que temos hoje para reduzir impactos em eventuais pandemias.
“O que me pego pensando é que nós esquecemos muito rápido. Um exemplo são as chuvas do Rio Grande do Sul. Marcaram, sensibilizaram, mas passaram… rápido. Talvez seja um mecanismo de defesa, por nos remeter de volta ao cenário da covid. Mas não pensar é não se preparar e, infelizmente, isso é algo de que não podemos abrir mão”, disse à reportagem durante o 26º Congresso de Infectologia, em Florianópolis, Santa Catarina.
Veja os principais trechos da entrevista.
Quais são os vírus que apresentam maior risco de causar a próxima pandemia?
Hoje, na minha opinião, o principal candidato é a influenza AH5N1, o vírus da gripe aviária. Apesar do nome, ele não anda circulando só entre aves. Já apareceu em vacas de leite, gatos, até animais marinhos. E os efeitos são bem variados: em alguns, não acontece nada; em outros, há infecções leves, mastite nas vacas, mortes em aves migratórias e até sintomas neurológicos em animais marinhos.
O que preocupa é que, cada vez que ele encontra uma espécie nova, ganha a chance de se transformar. É como uma roleta genética: às vezes a mutação não faz diferença, mas às vezes pode dar ao vírus a habilidade de infectar outras espécies, inclusive humanos. Para passar de pessoa para pessoa, ainda faltam mutações muito específicas, que, felizmente, não aconteceram. Mas a velocidade com que o H5N1 vem mudando acende um alerta.
A vacinação em animais ajuda, claro. Só que também pressiona o vírus a buscar formas de escapar. É a evolução acontecendo diante dos nossos olhos: o vírus tentando sobreviver e, no processo, ficando mais resistente. E ainda tem os suínos. Eles funcionam como um “laboratório natural”, já que conseguem se infectar tanto com vírus de aves quanto de humanos. Essa mistura pode gerar versões híbridas. Ou seja, o perigo não é só o H5N1 se adaptar direto ao humano, mas também passar antes pelos suínos e de lá surgir um vírus novo.
Mas o H5N1 não está sozinho nessa lista. Os coronavírus também continuam preocupando. O próprio SARS-CoV-2, que causou a covid-19, segue em mutação. E o “quartel-general” da família dos coronavírus são os morcegos, animais que conseguem carregar uma quantidade absurda de vírus sem ficarem doentes. É quase um superpoder biológico – quem sabe tenha nascido daí a inspiração para o Batman, que resiste a tudo, risos. Como existem milhares de espécies de morcegos espalhadas pelo planeta, o contato com outros animais é inevitável. E isso mantém sempre aberta a porta para novos “saltos” para os humanos. Em resumo: entre as mutações aceleradas do H5N1 e a flexibilidade dos coronavírus, temos dois fortes candidatos a protagonizar a próxima pandemia.
Mas há chances de desvios de rota…
Sem sombra de dúvidas. É sempre importante lembrar que, antes de 2009, por exemplo, nós estávamos mais próximos de um H5N1, e de repente surgiu um vírus suíno. Assim como estávamos atentos ao H5N1 e acabou surgindo a covid-19 em 2020. Ou seja, é imprevisível, mas há sinais que merecem nossa atenção.
Independentemente do tipo de vírus que pode causar uma pandemia, por que elas se tornam cada vez mais prováveis?
Se você olhar para a produção de frango no mundo, vai perceber um aumento significativo. Com o crescimento populacional, o frango se tornou a principal fonte de proteína, seguido pelo suíno e, por último, o gado. O problema disso é que produção em larga escala favorece a disseminação de vírus.
Além disso, há a mudança climática. Ela altera as rotas das aves migratórias, modificando onde elas pousam e se alimentam, o que influencia diretamente a circulação de vírus. Outro fator é a mobilidade das pessoas. Hoje, viajamos e circulamos muito mais e, ao mesmo tempo, estudos mostram que quanto maior a circulação de pessoas, maior a necessidade de vigilância de vírus respiratórios. Não é só uma questão de número de habitantes, mas de como eles se movimentam.
Todo esse conjunto, aumento da produção animal, mudanças climáticas e maior mobilidade humana, favorece a circulação viral.
E, em caso de uma nova pandemia, ela poderia ser tão catastrófica como a que vivemos?
Pode, mas não dá para afirmar. A gravidade de um vírus novo só fica clara quando ele começa a circular na população. Isso porque os vírus são seletivos, quase “gourmet”: cada um escolhe os tecidos do corpo onde vai atuar.
O SARS-CoV-1, por exemplo, aquele de 2002-2003, atacava mais o sistema gastrointestinal. As pessoas chegavam a passar 8, 10 dias com diarreia, e havia também sintomas respiratórios, mas nem sempre predominante. O período de incubação era longo, o que dava tempo de identificar o doente e isolar antes que transmitisse muito. Já o SARS-CoV-2, o da covid-19, foi diferente. Ele se concentrou nas vias respiratórias, mas depois vimos que também podia afetar rins, pâncreas, vasos sanguíneos (causando trombose), coração, e até o sistema nervoso central. Ou seja, era da mesma família dos coronavírus, também vindo de morcegos, mas com uma patogenicidade completamente distinta.
E com o tempo o vírus foi se adaptando. Hoje não vemos mais aquela mesma agressividade do começo. Por isso, tanto no caso de uma mutação do coronavírus quanto de um influenza que chegue ao nível de pandemia, ainda é um mistério como será. Em geral, atingem o trato respiratório, mas até onde isso vai, que manifestações podem surgir, qual será o impacto? É uma surpresa.
E nós estamos preparados?
Eu diria que não totalmente. Tivemos grandes aprendizados, como o uso de máscara. Hoje sabemos que, diante de uma pandemia, ela é indispensável. O hospital também precisou se reorganizar: criar novos leitos de UTI, adaptar enfermarias e lidar com a falta de equipamentos. Tínhamos reuniões semanais com toda a equipe — enfermagem, farmácia, limpeza, laboratório — para definir estratégias e resolver problemas. Profissionais de todas as áreas trabalharam juntos. Foi um verdadeiro modelo de adaptação. Hoje, temos mais leitos de UTI e enfermarias reformadas, incluindo setores com isolamento. Aprendemos muito a lidar com a pandemia e conseguimos responder com esforço coordenado.
Mas o grande objetivo da ciência, hoje, é chegar a uma vacina universal, capaz de proteger contra todas as mutações de um mesmo vírus. Isso vale para influenza e para os coronavírus. Seria como um “coringa”. Em vez de correr atrás de cada variante, já teríamos proteção. Pesquisadores tentam essa solução para influenza há mais de 20 anos. Existem hoje cerca de 300 estudos em andamento, e alguns até já estão em fase de testes em humanos. Mas, por enquanto, seguimos sem esse recurso, nem para influenza, nem para coronavírus.
Enquanto isso, entra um ponto prático: tempo. Na covid-19, conseguimos ter vacinas em seis meses, o que foi um marco histórico. Mas seis meses ainda é muito quando o vírus já está correndo o mundo. Com uma vacina universal, a resposta seria muito mais rápida.
Mas não é só de vacina que se faz uma preparação. Se tivermos uma pandemia de influenza, por exemplo, não basta garantir antivirais, vacinas ou máscaras. Muitos pacientes desenvolvem também infecções bacterianas, o que exige antibióticos. E aí temos dois desafios: manter estoques e, ao mesmo tempo, evitar o uso indiscriminado, já que a resistência bacteriana já é um problema enorme. Também é necessário pensar em como distribuir com agilidade.
Não adianta ter o medicamento estocado se ele não chega no tempo certo. Hoje, o Ministério da Saúde compra antivirais como o oseltamivir (Tamiflu) todos os anos e os distribui para as secretarias. Só que, na prática, a logística ainda falha. Estudos já mostraram, por exemplo, como o coronavírus se espalhou pelo estado de São Paulo. Esse tipo de informação poderia servir como guia para pensar rotas de entrega — onde mandar primeiro, em maior quantidade.
É como planejar uma rede de caminhões antes da tempestade. Pense numa pessoa que começa a ter sintomas gripais e precisa do remédio em até 48 horas. Se ele só está disponível em um centro de distribuição longe, o paciente pode perder tempo precioso. Agora, se o medicamento também estivesse em farmácias populares, por um valor acessível e com receita médica, seria muito mais fácil. Afinal, quando falamos de doenças respiratórias agudas, cada dia conta.
Por que, mesmo com o risco, pouco se fala sobre futuras pandemias?
Olha, eu acho que a gente esquece rápido. Não sou psiquiatra nem psicanalista, mas acredito que isso funcione até como um mecanismo de defesa. O que passamos não foi fácil para ninguém. Cada pessoa sentiu de um jeito, em camadas diferentes, com particularidades diferentes, mas o fato é que houve um impacto geral.
Por outro lado, o tema acaba ficando apagado por uma questão de custo. Imagine que você é uma gestora e começa a falar muito sobre pandemia. A primeira pergunta que vai receber é: “O que você já fez na sua cidade? O que analisou? Olhou para trás para ver onde errou na Covid?”
É engraçado como, em muitos eventos, só se fala dos acertos do H1N1, da Covid, do sarampo, da dengue. Mas os erros quase nunca são revisitados. E isso precisa ser feito.
E o que seria ‘revisitar’ os erros?
Existe um certo incômodo quando o assunto é esse. Ninguém erra de propósito, mas a verdade é que todos nós erramos. Eu mesmo já errei em laboratório, já errei com pacientes.
Depois de 2020, senti falta dessa reflexão. Precisávamos ter parado, olhado para trás e pensado: onde a coisa não funcionou? Nem sempre dava para corrigir tudo, claro, mas há situações que poderiam ter sido diferentes.
Um exemplo concreto é a distribuição de medicamentos, que sempre me preocupa. Já participei de encontros internacionais em que se discutia mandar remédios por drones para lugares afastados. Parece uma boa ideia, mas aí surgem perguntas: como controlar esses drones? E se cai a internet? E se a estrada alaga ou está coberta de neve, e ninguém consegue sair de casa? O que acontece com o paciente que precisa do tratamento? Esse tipo de debate precisa acontecer antes, não no meio da crise.
E tem ainda a questão do custo. Planejar é caro. É como seguro de carro: você paga todo ano, torce para nunca usar e, quando usa, agradece. Saúde deveria funcionar igual.
Mas aí vem a escolha: onde colocar o dinheiro? Muita gente prefere pagar o plano de saúde e deixar o seguro do carro de lado. Outros fazem o contrário. E tem quem não tenha nenhum dos dois. Com a preparação para pandemias é parecido: montar estoques de medicamentos custa caro, e parte pode até vencer sem ter sido usada. O mesmo vale para vacinas.
No fim das contas, todo País precisa decidir o quanto está disposto a investir em prevenção, mesmo sabendo que parte desse investimento pode nunca ser usado. É uma escolha que se faz.
Hoje temos vacinas tanto para influenza quanto para covid. Elas podem ajudar?
Sim. Mesmo que sejam para as variantes atuais – que são epidêmicas -, sempre recomendamos que as pessoas se vacinem. É especialmente importante para grupos vulneráveis, como crianças pequenas ou pessoas com comorbidades, que podem ter complicações graves. Mas mesmo entre jovens e adultos, que o vírus circula muito, a vacinação é importantíssima.
Estudos mostram, por exemplo, que pessoas vacinadas contra o H1N1 apresentaram alguma reação cruzada de anticorpos quando expostas ao H5N1 em experimentos laboratoriais. Não é uma proteção perfeita, mas cria uma espécie de “memória imunológica” que pode reduzir o impacto. Por outro lado, quando a população deixa de se vacinar, mais pessoas se infectam. E se houver infecção simultânea por outro vírus, pode surgir uma combinação que favoreça o aparecimento de um vírus novo, talvez mais grave e mais letal.
Acima de tudo, é necessário reconhecer que temos armas para minimizar o impacto de uma futura pandemia. Mas isso exige um esforço conjunto: da sociedade, dos profissionais de saúde e do poder público, para comunicar claramente que o risco é real e que a prevenção é essencial.
A repórter viajou a convite da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI)