Anos atrás, Amanda achou que não dava mais para conversar com sua arquiteta. As duas tinham passado tardes agradáveis escolhendo móveis, discutindo estilos, até trocando confidências. Um dia, a moça contou que, de acordo com a religião à qual havia se convertido, a vida humana na Terra começara há apenas 3 mil anos. “Com esse tipo de cabeça, não tem papo, sai pra lá”, pensou Amanda. E, assim, fechou-se uma porta.
Meses depois, foi a vez de Pedro, amigo de infância do marido, alguém doce e sempre presente, mas que, após a morte do pai, tomou um caminho mais conservador. Começou a questionar a ética de se fazer aborto. “Ignorante. Quem é ele para falar disso?”, pensou Amanda. E, em silêncio, empurrou a relação para a caixa das “superficiais”.
Quando Bolsonaro foi eleito, Amanda passou a considerar que todos que votavam nele eram, por definição, cruéis, ignorantes e racistas. Mas logo descobriu que um casal de amigos queridos estava nesse grupo. A equação ficou impossível: como conciliar o afeto com a certeza de que o outro representava algo “imperdoável”?
A virada mais dura veio depois dos ataques a comunidades em Israel em 7 de outubro. Amanda, que até então se reconhecia como alguém progressista — engajada em causas ambientais, de justiça fiscal e de redução da violência — percebeu que muitas de suas relações mais próximas a olhavam com desconfiança por manter vínculos com Israel.
Ao sentir falta de apoio naquele momento, também ela passou a desconfiar dos outros. De repente, não cabia em lugar nenhum. Foi aí que Amanda percebeu que a lógica da desumanização é centrífuga: começa no outro, mas cedo ou tarde nos alcança. Se a régua é sempre expulsar quem pensa diferente, todos se tornam descartáveis.
E então veio a notícia recente do assassinato de Charlie Kirk, que não poderia ser mais simbólica sobre o fracasso da palavra. Ele era jovem, com ideias controversas — algumas odiosas até — mas tinha uma marca rara: usava o diálogo como ferramenta. Literalmente montava uma tenda com a placa “convença-me do contrário” e ia para lugares onde sabia que a maioria discordaria dele.
Falava de temas que a maioria de nós evita — imigração, aborto, controle de armas. E o símbolo final: ele foi morto enquanto fazia exatamente isso, debatia em um campus de universidade, por uma única bala certeira, na garganta. Uma só — e acabou.
+ LEIA TAMBÉM: Outros textos de Ilana Pinsky na coluna Mens Sana
Agora aliados prometem retaliação (contra quem, exatamente?). E muitos dos que rejeitavam suas ideias parecem incapazes de admitir que o assassinato foi inaceitável. Como se reconhecer a gravidade do crime fosse, de alguma forma, validar todas as posições dele. Mas não é. É apenas o reconhecimento de que a bala não pode ser aceita como resposta. Voltamos ao velho Oeste.
O que está em jogo não é só política. É saúde mental coletiva. Uma sociedade só respira se as pessoas puderem discordar sem medo de serem canceladas, expulsas – ou literalmente eliminadas. Quando a confiança mínima nesse pacto se rompe, nascem ansiedade crônica, paranóia, isolamento — a sensação de que todo mundo é inimigo, que o diálogo é risco de vida.
Há caminhos possíveis. O Carter Center, fundado por Jimmy Carter, mostra isso em seus programas de resolução de conflitos: comunidades divididas por violência conseguiram retomar serviços básicos e restaurar confiança graças à mediação e ao diálogo.
O Moral Courage Project, de Irshad Manji, aposta em treinar estudantes, profissionais e adolescentes para se tornarem mentores em coragem moral — gente capaz de ouvir sem abrir mão de princípios, de usar narrativas pessoais para transformar conversas difíceis em oportunidades de aprendizado. É curioso notar que já ensinamos isso às crianças desde cedo: “use as palavras, não as mãos”.
A pedagogia da convivência é essa. Mas parece que vamos ter que reaprender — como sociedade inteira — a falar uns com os outros.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica e doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), entre outros livros. Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia. Siga a colunista no Instagram: @ilanapinsky_