Ao sul do paralelo 38, está o país que conquistou o planeta com dorama, grupos de K-pop, carros e celulares ultratecnológicos. Ao norte, encontra-se a república de fronteiras fechadas, sob uma ditadura familiar e comunista, que estremece a vizinhança e o noticiário com seus anúncios de testes com armas nucleares. Cada uma a seu modo, as Coreias são um espelho das lutas e divisões que marcaram o século XX. Mas sua história, entre cisões e unificações, é bem mais longa e rica que a separação brotada com a Guerra Fria.
E é um panorama de suas origens até nossos tempos que o historiador Emiliano Unzer oferece em Filhos do Céu e da Ursa, livro que acaba de ser publicado pelo selo Crítica da Editora Planeta. O título, que faz referência ao nascimento mítico desse povo, percorre, de forma bastante didática (e nada enfadonha), os caminhos trilhados pela(s) Coreia(s) desde os primeiros registros humanos na península – milhares de anos antes de Cristo – e nos apresenta o panteão de personagens, dinastias, ideologias e religiões que moldaram tal trajetória.
Dois fenômenos chamam a atenção e ocupam boa parte da obra assinada pelo professor de história da Ásia da Universidade Federal do Espírito Santo. Primeiro: a divisão desse território não é exatamente uma novidade plantada por uma guerra no início dos anos 1950. A Coreia foi, durante séculos, formada por reinos que ora se aliavam ora digladiavam. Segundo: a península foi alvo frequente de invasões – começou com os chineses, depois vieram os japoneses -, e isso teve um papel decisivo no desenho que a nação tomaria e nas influências culturais que seriam amalgamadas em seus valores morais e políticos.
Se hoje estamos sentados na frente da TV assistindo a shows ou séries sul-coreanas, digitando em um celular da Samsung ou dirigindo um Hyundai por ruas brasileiras, é porque inúmeros coreanos, do alto e baixo clero, deram sangue, suor e imaginação à construção de um país que, entre milagres econômicos e rupturas ideológicas, ganhou espaço definitivo na geopolítica global. Sempre à sombra de seu irmão mais carrancudo e misterioso ao norte.
Com a palavra, Emiliano Unzer.

Existe algum momento ou episódio em especial da história da Coreia que considere mais representativo ou extremamente simbólico para a humanidade?
Se tivesse de escolher um momento, destacaria a transição do período Koryo para a dinastia Joseon, no final do século XIV. Poucos episódios revelam com tanta clareza como o destino de uma nação pode ser redesenhado por disputas ideológicas. Não foi apenas a substituição de uma dinastia por outra, mas a ascensão do confucionismo como matriz organizadora da vida política, social e cultural da Coreia por mais de 500 anos. Essa mudança gerou um Estado centralizado, pautado por rituais, códigos legais e uma elite letrada que se via como guardiã da moralidade. É um momento simbólico porque nos mostra algo essencial à história humana: as civilizações não se sustentam apenas pela força militar, mas pela capacidade de construir imaginários de legitimidade.
Guerra e religião também marcam a história da Coreia, não?
Outro momento de destaque se deu no chamado Período dos Três Reinos (séculos I a VII), sobretudo o processo de unificação sob o reino de Silla, no século VII. Não foi apenas um período de guerras de conquistas, mas um momento em que a península coreana se tornou um laboratório de interações culturais — com o budismo vindo da China e da Índia, a consolidação de instituições de Estado e a formação de uma identidade distinta. Esse processo demonstra como as civilizações não nascem isoladas, mas de encontros, conflitos e sínteses. O florescimento cultural que se seguiu, materializado em sítios budistas como a gruta de Seokguram ou no templo Bulguksa, representa um patrimônio da humanidade: a ideia de que a arte e a religião podem ser instrumentos de unidade política e de imaginação coletiva.
Depois das suas pesquisas para a elaboração do livro, qual personagem julga mais poderoso nessa trajetória da história coreana?
Entre tantas figuras notáveis da história asiática, uma que particularmente me fascina é Jang Yeong-sil, um inventor, engenheiro e cientista coreano do século XV. Nascido em uma família de classe baixa — possivelmente na condição de escravo ou servo, segundo alguns registros —, sua trajetória é extraordinária não apenas pelos feitos técnicos, mas pelo simbolismo de sua ascensão. Em uma sociedade rigidamente hierarquizada como a da dinastia Joseon (1392–1897), onde o nascimento determinava, em grande parte, o destino de um indivíduo, Jang Yeong-sil quebrou as convenções sociais ao ser reconhecido e promovido por seu talento e engenhosidade.
Seu maior patrocinador foi o rei Sejong, o Grande, que reinou de 1418 a 1450, um dos monarcas mais cultos e progressistas da história coreana. Sejong é amplamente lembrado por seu compromisso com o avanço da ciência, da tecnologia e da alfabetização — foi sob seu reinado que se criou o hangul, o alfabeto coreano. Percebendo o potencial incomum de Jang Yeong-sil, Sejong não apenas ignorou sua origem humilde, mas também concedeu a ele uma posição oficial na corte real, algo praticamente inédito na época.
Mas quais foram as realizações desse personagem?
No serviço real, Jang projetou e construiu uma série de instrumentos científicos inovadores, como relógios de água automáticos (Jagyeokru), globos celestes e esferas armilares, usados para mapear os movimentos dos corpos celestes e um dos primeiros pluviômetros padronizados do mundo, chamado cheugugi. Infelizmente, mesmo após alcançar reconhecimento, Jang Yeong-sil enfrentou oposição dentro da corte. Fontes indicam que, após uma falha técnica em uma das carruagens que ele projetou para o rei, foi punido e afastado de sua posição. A partir desse ponto, os registros sobre ele desaparecem, o que levanta questões sobre como o preconceito social pode ter influenciado o fim de sua carreira. Ainda assim, o impacto de seu legado permanece: ele continua sendo um símbolo da ciência como caminho de emancipação individual e coletiva.
A que atribui o atual status de potência cultural conquistado nos últimos anos pela Coreia do Sul?
O atual status da Coreia do Sul como potência cultural global é fruto de um processo histórico complexo, que combina uma rica herança cultural, uma longa tradição de assimilação e reinvenção de influências externas, políticas públicas estratégicas e um espírito nacional voltado à inovação e criatividade. O governo sul-coreano reconheceu cedo o valor econômico e diplomático da cultura. A partir dos anos 2000, o Estado passou a investir fortemente nas indústrias culturais, por meio de políticas públicas, como o Ministério da Cultura, Esportes e Turismo, e agências como a Korea Creative Content Agency (KOCCA).
Esses investimentos fomentaram não apenas o chamado K-pop, mas também a indústria cinematográfica, os videogames e os webtoons (quadrinhos digitais). O sucesso do grupo BTS, por exemplo, é frequentemente citado como um exemplo de soft power coreano: um grupo que alcançou o topo das paradas globais e foi até mesmo convidado para discursar na ONU em 2018 e 2021. A cultura coreana não apenas encanta o mundo por suas emoções universais, mas também se revela como um exemplo notável de soft power moderno, em que identidade, economia e diplomacia se entrelaçam.
Ainda vislumbra alguma chance de reunificação das Coreias?
A reunificação continua a ser uma aspiração simbólica, evocada em hinos, discursos e memórias familiares. Mas, na realidade concreta, as duas Coreias tornaram-se mundos quase paralelos, distantes um do outro. O Norte desenvolveu um regime militarizado e nuclearizado; o Sul transformou-se numa sociedade globalizada e próspera. Mais de 70 anos de separação criaram identidades distintas, que já não se reconhecem com naturalidade.
É provável que uma reunificação coreana só ocorra se houver uma profunda mudança geopolítica no entorno, envolvendo China, Rússia e Estados Unidos, ou uma crise grave de legitimidade no governo ao norte do paralelo 38. Até lá, o que se pode vislumbrar são gestos pontuais de aproximação, mais simbólicos do que estruturais, como foi o caso da equipe conjunta coreana de hóquei feminino nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018 em Pyeongchang, na Coreia do Sul, sob um hino coreano de origem folclórica, o Arirang, patrimônio cultural da Unesco das duas Coreias.