O Chile possui a maior vinícola da América Latina, a Concha y Toro, dona de uma área de cultivo de 11 000 hectares. É vinhedo que não acaba mais. Caberiam ali na propriedade quase setenta parques do Ibirapuera — ou, para ficar numa comparação internacional, pouco mais de trinta Central Parks. A exemplo de outras grandes casas daquele país, a Concha y Toro fica na região central, mais precisamente, a 30 quilômetros da capital Santiago. Essa e outras grandes companhias tomaram conta das terras consideradas mais nobres (e caras), obrigando os pequenos produtores a desafiar climas inóspitos, como o do deserto do Atacama e o das geleiras da Patagônia, ao sul, na busca de novos terroirs para suas vinificações.
Parecia missão impossível ganhar algum espaço nessa luta dentre Davi e Golias do mundo dos vinhos chilenos, mas a união dos pequenos está fazendo a força. De quebra, o movimento começa a mudar a percepção sobre o perfil e a qualidade dos rótulos do país. Tudo começou em 2009, quando um grupo de doze pequenos produtores de vinho decidiu se unir para enfrentar um desafio comum: como ganhar visibilidade em meio à terra de gigantes. Nascia ali o MOVI (Movimiento de Viñateros Independientes), uma associação que, ao longo de pouco mais de uma década, transformou-se em um dos principais porta-vozes da diversidade e autenticidade do vinho chileno no cenário mundial.
Até então, a imagem do vinho chileno no exterior era fortemente associada à produção em larga escala, com marcas conhecidas pela regularidade, mas não necessariamente pela singularidade. Os pequenos produtores, mesmo com vinhos de alta qualidade, tinham dificuldade em competir com a estrutura de marketing e distribuição das grandes vinícolas.
O MOVI surgiu justamente para tentar mudar esse cenário. Unidos, os produtores independentes puderam dividir custos, compartilhar experiências técnicas e, sobretudo, ganhar força para apresentar seus vinhos em feiras internacionais e conquistar críticos e sommeliers de prestígio.
O diferencial dessas vinícolas está no compromisso com vinhos de identidade própria. Sem a obrigação de responder a acionistas ou obedecer estratégias massivas de mercado, os membros exploram variedades pouco conhecidas, resgatam vinhedos antigos e trabalham com práticas de vinificação artesanal. Esse olhar autoral conquistou não apenas críticos, mas também consumidores globais que buscam narrativas mais próximas do território e da pessoa que faz o vinho. Como costuma dizer um dos fundadores, Sven Bruchfeld, da Polkura,“o MOVI deu voz aos vinhos que antes não eram ouvidos”. No evento que reuniu produtores do grupo aos grandes do Wine Of Chile na última semana, ele apresentou o seu rótulo Secano, um Syrah com um nada usual aroma de melão e pêssego, que tem produção de 2.000 garrafas por safra.
Inspiradas pela força dos independentes, grandes vinícolas passaram a lançar projetos menores, voltados para terroirs específicos e séries limitadas. O que tem causado um efeito duplo: ajuda a enriquecer a oferta de vinhos chilenos no mundo e, ao mesmo tempo, começa a reposicionar a imagem do país, que passa a ser visto como produtor de diversidade e qualidade em todas as faixas de preço.
Hoje, o MOVI reúne cerca de 35 vinícolas espalhadas de norte ao sul do Chile e é reconhecido internacionalmente como um dos mais relevantes movimentos de pequenos produtores da América Latina. “Em mercados exigentes, como Estados Unidos, Ásia e Europa, nossos vinhos competem de igual para igual com rótulos franceses, italianos e espanhóis, muitas vezes entregando qualidade superior pelo mesmo valor”, disse Jean Charles Villar à coluna AL VINO, durante evento recente na Praça São Lourenço, em São Paulo. Um dos vinhos dele que chamou muita atenção foi o Ramato 2023, um laranja da uva Pinot Grigio que fica 56 dias em contato com as cascas e por isso ganha um tom alaranjado vivo, ímpar e especial.

NAS CARTAS DOS GRANDES RESTAURANTES DE SP
O MOVI se tornou, em pouco tempo, um símbolo de resistência e inovação dentro do mundo do vinho. Mostrou que colaboração pode ser mais poderosa que competição e que a escala não é, necessariamente, sinônimo de relevância. Esse é o caso do Chardonnay Tara, produzido no deserto do Atacama pela Ventisquero. Os pequenos lotes que saem dali estão hoje em restaurantes estrelados de São Paulo, como D.O.M, Tuju e Palácio Tangará. Para se ter uma ideia da peculiaridade do projeto, os ovos de cimento, onde a fermentação acontece, são feitos com areia do Atacama, de forma que a vinificação natural reflita absolutamente aquele terroir. O vinho é uma delicadeza e, ao mesmo tempo, vibrante, uma combinação de notas cítricas com minerais. Outro exemplo de pequeno, mas poderoso, é o Chardonnay da Trapi, produzido na Patagônia. Ele é mais austero e persistente, perfil típico de clima frio. A mesma Trapi produz também um Pinot Noir digno de nota. No evento da Praça São Lourenço, o enólogo Rodrigo Romero estava em busca de um parceiro para trazê-lo ao Brasil (#ficaadica).
Para o consumidor global, o movimento está descortinando um Chile plural, capaz de surpreender tanto na categoria premium quanto na intermediária. Para o próprio país, é um divisor de águas: o Chile não pode ser visto apenas como terra de Cabernet Sauvignon de entrada, mas como um mosaico de terroirs, estilos e histórias. Em um mercado cada vez mais atento à origem e à autenticidade, o MOVI é a prova de que os pequenos também podem ditar tendências — e que, quando unidos, podem ajudar a transformar a paisagem de um setor inteiro.