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A revolta Z: como eclodiu a crise generalizada provocada pela juventude do Nepal

É um fato de nosso tempo: a tensão entre governos e big techs aquece um fervilhante caldeirão que mescla o inalienável direito à liberdade de expressão e a necessidade de regulação das redes sociais, sem a qual o universo virtual vira território sem lei. A temperatura tem aumentado nos países cujo mercado digital é maior — como os Estados Unidos, parte da União Europeia e o Brasil. Foi no Nepal, contudo, que o caldo realmente entornou. A nação asiática, de apenas 30 milhões de habitantes e território menor que o Acre, incrustado entre a China e a Índia, foi repentinamente tomada por violentos protestos depois de o governo banir mais de vinte plataformas eletrônicas que não cumpriram com novas regras de funcionamento. As medidas, logo entendidas como censura, levaram uma multidão, formada primordialmente por integrantes da geração Z, de 20 e poucos anos, às ruas de Katmandu. A revolta generalizada culminou com o palácio do governo incendiado e a renúncia do primeiro-ministro.

O Z, pelas bandas de lá, foi sempre identificado com o zen-budismo, a calma e a placidez, a negociação. Que nada. As cenas da derrocada do premiê Khadga Prasad Sharma Oli foram assustadoras. O Parlamento, a Suprema Corte, sedes de partidos e as residências de políticos foram invadidas. A turba encurralou um antigo governante e sua companheira antes de eles fugirem em um helicóptero. A mulher de um ex-premiê teria sido queimada viva dentro de casa. O caos durou dois dias, com forte repressão policial e tiros. Ao menos 22 manifestantes morreram e centenas ficaram feridos, até que o exército interveio, de modo a decretar estado de sítio por tempo ilimitado.

IRA - Manifestante: velhos políticos na mira da população
IRA - Manifestante: velhos políticos na mira da populaçãoSafal Prakash Shrestha/Getty Images

O caminho para a pacificação, contudo, segue distante. Fruto de um mundo digital estilhaçado, a revolta não produziu um líder capaz de acalmar as massas. A frágil oposição, até outro dia sufocada pela coalizão de centro-esquerda que comandava o país, tem pouca ascensão sobre o eleitorado. Diante das incertezas, cogita-se um governo militar provisório. Quem quer que assuma terá de se comprometer a retirar do poder a casta de políticos de carreira que governa a frágil democracia, instalada em 2008, após a queda de uma monarquia autoritária. Nas últimas semanas, jovens vinham inundando a internet com críticas à vida luxuosa de governantes e seus filhos, a quem apelidaram de nepo kids. “Reformas prometidas com a mudança de regime nunca frutificaram”, diz Hari KC, cientista político da Universidade Wilfrid Laurier.

O descaso representou rastilho de pólvora. A violência é inaceitável, mas o movimento da juventude tem alguma explicação. As medidas impostas às plataformas eram razoáveis: exigiam-se licença para operar no país e a nomeação de um representante legal para analisar reclamações de remoção de conteúdo, mas o exíguo prazo de uma semana mostrou-se impraticável. Apenas quatro empresas se enquadraram, levando à suspensão do Whats­App, Facebook e X. O apagão digital afetou particularmente a conexão dos nepaleses, com 2,2 milhões de compatriotas que emigraram em busca de uma vida melhor, já que o desemprego atinge um quinto dos jovens entre 15 e 25 anos, uma das maiores taxas do continente asiático. Muitas famílias dependem financeiramente das remessas anuais de quem se foi, que somam 11 bilhões de dólares e representam mais de um quarto do PIB. Os jovens produziram um incêndio difícil de apagar, de repercussão internacional. Um levantamento do Instituto Democracia em Cheque mostrou que, durante a semana, no Brasil, apoiadores de Jair Bolsonaro postaram dezenas de informações em torno da grita asiática, como cortina de fumaça, em eventos retratados como “coragem popular frente a poderes autoritários”. Nada como misturar alhos e bugalhos para fazer da internet um pandemônio ao avesso do zen.

Publicado em VEJA de 12 de setembro de 2025, edição nº 2961

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