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Uma arapuca processual tributária

Em minha última coluna, tratei da necessidade de o segundo projeto de regulamentação da reforma tributária corrigir graves equívocos do primeiro projeto, que foi aprovado às pressas pelo Congresso e sem a necessária avaliação da sociedade civil. Isso não significa, no entanto, que as disposições próprias desse segundo projeto são imunes a críticas.

O PLP 108/24, que aguarda avaliação do Senado, tem um propósito mais operacional que a Lei Complementar 214/25, aprovada no ano passado. Esse segundo projeto é voltado basicamente para a organização da Administração Pública em relação à Reforma Tributária. Ele prevê, por exemplo, o funcionamento do Comitê Gestor, as multas pelo descumprimento das obrigações acessórias e o processo administrativo fiscal.

Neste último ponto, a necessidade de aprimoramento do projeto é indiscutível. O processo administrativo fiscal é matéria indispensável à organização de um sistema tributário justo e transparente. Pouco adianta termos leis claras e uma legislação tributária única se o processo por meio do qual o Fisco analisar as controvérsias tributárias for viciado e ineficaz.

No regime atual, quando um contribuinte recebe autuação tributária, tem o direito de contestar a cobrança no âmbito de um processo administrativo, que será julgado por um tribunal formado, igualmente, por representantes do Fisco e dos contribuintes. Essa paridade de forças é essencial para que o processo administrativo tributário cumpra sua função de fazer o autocontrole das autuações fiscais, sanando eventuais erros e exageros sem a necessidade de envolvimento do Poder Judiciário. A composição desses órgãos julgadores por representantes dos contribuintes é vital para levar o ponto de vista dos pagadores de impostos para esses julgamentos. É assim que funciona hoje o CARF e os tribunais administrativos fiscais estaduais e municipais.

E é assim que funcionará, no âmbito da Reforma, os processos relativos ao IBS e à CBS, que serão julgados por câmaras paritárias, formadas por representantes dos contribuintes e do Fisco, sendo que os últimos terão o poder de desempatar eventuais julgamentos em que não se forme uma maioria.

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O problema é que a reforma criou uma espécie de quarto grau de julgamento, chamado Comitê de Harmonização, que será responsável por decidir as causas em que o tribunal federal decida de forma contrária ao tribunal estadual/municipal. Essa é uma possibilidade real que decorre da criação de dois tributos, o IBS e a CBS, que devem observar regras idênticas, mas que, na prática, são julgados por esferas diferentes.

Curiosamente, o projeto reconhece a necessidade de observar a regra de paridade para os tribunais do IBS mas, para o Comitê de Harmonização, prevê a participação exclusiva de representantes do Fisco, não havendo sequer possibilidade de manifestação dos contribuintes interessados. Assim, caso o CARF decida que o produto X é imune à tributação, mas o tribunal do IBS decida que o mesmo produto X deve ser tributado, será o Comitê de Harmonização que decidirá, sem nenhuma participação dos contribuintes, qual será o resultado adequado. Não é necessário bola de cristal para saber qual será a linha de entendimento desse órgão.

Mais do que um retrocesso, a ausência de representantes dos contribuintes no Comitê de Harmonização representa verdadeiro desprezo para com o contribuinte. Já é bastante difícil convencer o Fisco sobre seus erros nos julgamentos perante o CARF. Essa armadilha de um grau de revisão exclusivamente fiscalista torna essa uma tarefa quase impossível. E caso os contribuintes tenham a ciência de que uma difícil vitória administrativa ainda será revista por um tribunal integralmente formado por fiscais, o desânimo com o processo administrativo será inevitável, e a consequência poderá ser de abandono das esferas administrativas para levar as discussões diretamente ao Judiciário. Com isso, o discurso de redução da litigiosidade fiscal da Reforma cairá por terra.

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Outro retrocesso do projeto diz respeito à regra que veda aos tribunais administrativos dos novos tributos realizarem o chamado “controle de legalidade”, ou seja, a não aplicação de atos normativos que violem a lei. O projeto veda essa prerrogativa aos órgãos julgadores do IBS, de forma que, mesmo se identificarem que um ato infralegal contrarie uma lei, terão de aplicar o ato ilegal, até que um tribunal judicial declare sua invalidade.

Trata-se de verdadeiro retrocesso, já que tribunais administrativos como o CARF podem afastar a aplicação de atos normativos ilegais. Não o podem fazer sob o argumento de que violam a Constituição, já que a declaração de inconstitucionalidade é prerrogativa do Poder Judiciário mas, como entes administrativos, têm toda a capacidade para afastar normas ilegais. A consequência da nova regra será um estímulo adicional à judicialização de litígios que envolvam a ilegalidade desses atos, implicando em maiores custos para o estado e, principalmente, para os contribuintes.

A revisão da composição do Comitê de Harmonização e a garantia da possibilidade de controle de legalidade pelos órgãos julgadores do IBS são matérias que devem ser revistas pelo Senado para que se alcance o objetivo de uma Reforma justa, simples e cooperativa. De nada adiantará termos um regime teoricamente funcional se os seus órgãos de julgamento forem viciados e estimularem maior litigiosidade. A reforma não pode ser uma na teoria e outra na prática. É necessário que a lei garanta os instrumentos processuais necessários para a efetivação da mudança tributária desejada pelo país.

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