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Pix: a estatal invisível

Nesta semana (iniciada em 7 de setembro), em reportagem no jornal inglês Financial Times, li sobre como a Índia está expandindo o uso de sua infraestrutura digital de pagamentos, o UPI, que em 2023 registrou mais de 120 bilhões de transações e movimentou cerca de US$ 2,2 trilhões. O governo indiano agora pretende usar essa rede para alavancar o crédito de consumo. O movimento chama a atenção não apenas pela escala da transformação, mas pelo risco que carrega: quando o Estado cria e opera uma infraestrutura tecnológica dominante, reduz o espaço da inovação privada e amplia sua presença em áreas onde deveria atuar apenas como regulador. Esse dilema não é exclusivo da Índia. O Brasil vive hoje situação semelhante, e em escala ainda maior, com o Pix.

O Pix tornou-se a espinha dorsal do dinheiro digital brasileiro. Em 2024 foram 63,5 bilhões de transações, movimentando mais de R$ 27 trilhões. É a maior rede de pagamentos instantâneos do mundo, crescendo a taxas de dois dígitos ao ano. Se fosse companhia aberta e cobrasse apenas um centavo por transação, teria faturado R$ 427 milhões. Com dez centavos, passaria de R$ 4 bilhões. Em um modelo misto de tarifas baixas e serviços de crédito, como o Pix Parcelado, a receita poderia chegar a dezenas de bilhões anuais. Pelas métricas de mercado, isso equivaleria a um valor entre R$ 80 bilhões e 140 bilhões já na próxima década, comparável aos do Banco do Brasil ou da XP, e em cenários mais ambiciosos poderia rivalizar com Itaú, Nubank e até Petrobras.

A dimensão alcançada expõe uma contradição institucional. O Banco Central é regulador, operador e árbitro ao mesmo tempo. Define regras de entrada, supervisiona riscos, exige dados confidenciais de todas as instituições financeiras e, simultaneamente, concorre com elas no serviço mais básico do sistema: transferir e liquidar pagamentos. Nenhuma empresa privada consegue competir em igualdade quando o árbitro é também o dono do campo. O risco não se limita à concorrência. O regulador que tem acesso legal a dados estratégicos de bancos, fintechs e bandeiras pode utilizá-los para fortalecer seu próprio negócio, ampliando o monopólio.

A defesa oficial é de que o Pix é gratuito para pessoas físicas. Mas nada é gratuito. O custo existe, recai sobre os bancos obrigados a se integrar ao sistema e, em última instância, sobre todos nós. Essa ilusão corrói o princípio da precificação correta e da responsabilidade fiscal. Estamos, na prática, estatizando uma das atividades mais lucrativas do setor financeiro sem transparência, sem lei específica e sem prestação de contas ao mercado.

Outros setores oferecem contraste. Em energia, petróleo e rodovias, há separação entre política pública, regulação e operação. Existem agências independentes, regras tarifárias claras e companhias listadas em bolsa, sujeitas a conselhos e acionistas. No Pix, tudo está dentro do Banco Central. É poder tecnocrático concentrado, eficiente no curto prazo, mas arriscado no longo.

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A saída não é desmontar o Pix, mas profissionalizá-lo. O caminho é transformá-lo em companhia independente, com golden share da União, governança de mercado, transparência de custos e listagem em bolsa. Com tarifas baixas por transação e cobrança por serviços adicionais, manteria a inclusão e a eficiência, mas deixaria de ser um monopólio opaco nas mãos do regulador. O Banco Central voltaria à sua função natural de supervisionar, e não de operar.

Reconhecer o mérito não impede de corrigir a arquitetura. O Pix é uma obra de engenharia institucional admirável, um caso de sucesso global, mas precisa ser submetido a freios e contrapesos. O Brasil pode dar um passo adiante no liberalismo prático: o Estado não precisa ser empresário nem CEO, mas sim acionista exigente que cobra resultados e distribui dividendos à população. O Pix mostrou que sabemos construir plataformas digitais de classe mundial. Agora precisamos da etapa adulta, separar o regulador do operador, impor governança de mercado e devolver ao cidadão o benefício de um serviço eficiente, transparente e rentável. O que o Brasil não pode é transformar mais uma conquista tecnológica em uma estatal suscetível a pressões políticas, ao risco de captura e à repetição dos vícios que tantas vezes corroeram empresas públicas no passado.

*Gustavo Diniz Junqueira foi secretário de Agricultura do Estado de São Paulo, presidente da Sociedade Rural Brasileira e é empresário do agronegócio 

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