Antes mesmo da recente polêmica do suposto “debate” — que, na prática, não passou de um circo — com um profissional de educação física que expôs teses preconceituosas e sem base científica sobre obesidade, eu já planejava escrever sobre o tema. O gatilho acabou vindo da minissérie documental da Netflix sobre o reality show The Biggest Loser.
Para quem nunca ouviu falar, trata-se de uma série americana idealizada pelo produtor David Broome, inspirada em um cartaz de academia que dizia: “Necessito de ajuda de um personal trainer para salvar minha vida”. Estreou em 2004, teve 18 temporadas (a última em 2020) e se tornou um sucesso. O formato era simples: pessoas com obesidade competiam em provas, dieta e exercícios; quem perdesse mais peso seguia na disputa, e o “vencedor” levava US$ 250 mil e o título de “maior perdedor” (de peso, claro).
Acredito que o programa refletia o espírito de sua época: antes do aprofundamento científico sobre obesidade, prevalecia a visão de que pessoas obesas eram preguiçosas, sem força de vontade. Os produtores souberam capitalizar esse preconceito.
O formato incluía medições de peso e gordura, divisão em duplas e eliminação baseada na soma da perda de peso; preparadores físicos submetiam os participantes a sessões extenuantes de atividade física, muitas vezes marcadas por humilhações e bullying. Em uma corrida de 1,6 km, uma participante quase faleceu de rabdomiólise, uma síndrome que pode ocorrer quando indivíduos, geralmente sedentários (mas não exclusivamente), realizam atividades físicas muito intensas, podendo causar lesões graves nos rins e, se não tratada, levar ao óbito.
Na oitava temporada, a dieta “oficial” do programa previa 1.400-1.500 kcal diárias. Entretanto, os participantes relataram que os treinadores recomendavam planos de apenas 800 kcal — o que não seria necessariamente problemático, desde que houvesse concordância e acompanhamento próximo do médico responsável, que, no caso, não aprovava essa abordagem tão restritiva.
Havia ainda as chamadas “provas de tentação”, nas quais os participantes podiam conquistar algum benefício caso se permitissem comer alimentos altamente calóricos e palatáveis, como chocolates, pizzas e donuts. Mais uma vez, a lógica era criar uma dicotomia perversa: ou o participante comia, ganhava o “prêmio” e demonstrava “fraqueza”, ou se mantinha resiliente, perdia o benefício e corria o risco de ser eliminado.
Isso sem contar o uso desenfreado de cápsulas de cafeína para aumentar o gasto energético e melhorar a performance física. O problema é que, além do próprio médico do programa ter proibido até mesmo o consumo de café, suplementos de cafeína não são recomendados para pacientes com hipertensão arterial, já que alguns estudos indicam que podem elevar a pressão no curto prazo.
Ou seja, no fim das contas — surpresa — não se tratava de um programa sobre saúde, mas sim de uma tortura televisionada, cujo único objetivo era entreter à custa das dores físicas e emocionais dos participantes.
Contudo, há dois aspectos que merecem reflexão e que vale a pena discutir com base em estudos. O primeiro é simples: a ciência gerada pelo reality. O segundo é mais sensível, mas igualmente importante, pois ajuda a desmistificar de vez a ideia simplista e equivocada de que a obesidade é uma escolha: trata-se das alterações fisiológicas que ocorrem na obesidade e que dificultam — e muito — tanto a perda de peso quanto a manutenção do novo peso.
A ciência de The Biggest Loser
Em 2012, oito anos após a primeira temporada, pesquisadores conduziram um estudo observacional para avaliar se os participantes do The Biggest Loser preservavam a massa livre de gordura (FFM) e minimizavam a desaceleração metabólica durante a perda de peso.
O estudo, “Metabolic Slowing with Massive Weight Loss despite Preservation of Fat-Free Mass”, acompanhou 16 competidores (9 mulheres, 7 homens) em um rancho isolado, com 90 minutos de treino vigoroso seis vezes por semana, podendo chegar a até 3 horas adicionais diárias.
A ingestão alimentar não foi monitorada, mas recomendou-se que os voluntários consumissem cerca de 70% das necessidades basais, aproximadamente 1.403 kcal/dia.
A cada 7–10 dias, um participante era eliminado da competição e retornava para casa, onde prosseguia com o programa de exercícios e dieta de forma não supervisionada. Na 30ª semana (7 meses), todos voltaram a Los Angeles para os testes, coincidindo com a transmissão ao vivo na televisão.
As medições – de condições físicas e metabólicas – ocorreram em três momentos: uma semana antes da competição (linha de base), na 6ª e na 30ª semana. Dos 16 participantes, todos completaram as avaliações de linha de base e trigésima semana, e 11 foram medidos na sexta semana, sem diferenças significativas entre os grupos.
Na linha de base, os participantes apresentavam obesidade grave, com IMC aproximado de 49,4 kg/m² e peso médio de 149,2 kg (49% de gordura). Após seis semanas, a perda média foi de 15 kg, majoritariamente gordura. Na trigésima semana, a redução média foi de 57,6 kg (~40% do peso inicial).
Medições de gasto energético em relação à massa magra sugeriram adaptação metabólica — uma condição em que há redução na taxa metabólica de repouso maior do que a esperada ao considerar apenas as mudanças na composição corporal, identificada pela diferença entre a taxa metabólica de repouso medida e a estimada ou por modelos ajustados para alterações na massa gorda e na massa livre de gordura.
Esses resultados indicam que uma pessoa com obesidade possivelmente sempre precisará monitorar sua alimentação e manter níveis elevados de atividade física. Mas é preciso apontar algumas limitações do estudo, como, por exemplo, a ausência de grupo controle, além da variação entre os indivíduos quanto ao grau de déficit energético, tipo, quantidade e intensidade do exercício e da restrição calórica. Essas limitações impedem afirmar com precisão quais foram os efeitos relativos do exercício sobre a perda de peso e as mudanças na composição corporal.
Intrigado com os achados, um dos pesquisadores desse grupo, o Dr. Kevin Hall — sim, o mesmo discutido em outro texto contando como foi censurado pela gestão de Robert F. Kennedy Jr. no equivalente ao Ministério da Saúde dos EUA — publicou, ainda em 2012, o artigo “Diet versus exercise in the Biggest Loser weight loss competition”, cujo objetivo foi quantificar a contribuição da dieta e do exercício na perda de peso usando um modelo computacional validado do metabolismo humano.
O modelo previu perda média de 0,4 kg/dia no rancho e 0,19 kg/dia em casa, totalizando 58,2 kg, com 81,6% de gordura. Durante a estadia, a ingestão média caiu 65% (1.300 kcal/dia) e o exercício vigoroso médio foi de 3,1 h/dia; em casa, a ingestão aumentou para 1.900 kcal/dia e o exercício caiu para 1,1 h/dia.
Simulações isoladas mostraram que apenas a dieta geraria 34 kg de perda, com 65% de gordura. Apenas o exercício resultaria em 27 kg de perda, com leve ganho de massa magra, e 5 kg a mais de gordura eliminada.
Cenários adicionais indicaram que manter 1.900 kcal/dia e 1,1 h/dia de exercício por 1,3 ano seria insustentável, enquanto retornar a um estilo de vida sedentário com 3.700 kcal/dia levaria à recuperação do peso original em 7 meses. Com 20 minutos diários de exercício e 3.000 kcal/dia, apenas 30% da perda total seria mantida em 30 semanas.
Uma limitação do modelo é que ele assume que a ingestão média de energia e o exercício vigoroso são constantes em cada período (no rancho e em casa), sem incorporar variações diárias. Além disso, fatores hormonais, neurobiológicos, psicossociais e ambientais — que podem influenciar decisões de alimentação e atividade física em pessoas com obesidade — não foram considerados.
Para quem acompanhou a série, um dos aspectos mais tristes — pelo menos na minha visão — era ouvir os relatos, principalmente dos vencedores de duas temporadas, que, após voltarem para casa e imaginarem que sabiam como evitar o reganho de peso, perceberam, ao longo dos meses e anos, que estavam voltando a engordar.
Uma pesquisa publicada em 2016 pelo Dr. Hall e colegas mostrou que isso era esperado. Intitulada “Persistent metabolic adaptation 6 years after The Biggest Loser Competition”, o estudo investigou se a adaptação metabólica persistia anos após a competição e se correlacionava com o reganho de peso.
Foram recrutados 14 dos 16 competidores, e seis anos após o término da competição foram realizadas novas medições da taxa metabólica de repouso e da composição corporal. Ao final da competição, os 14 participantes (idade média 34,9 anos) apresentavam peso médio de 90,6 kg, 28,1% de gordura corporal, gasto energético total de 3.002 kcal e gasto por atividade física de 10,0 kcal/kg/dia.
Seis anos depois, o peso médio aumentou para 131,6 kg, com 44,7% de gordura, gasto energético total de 3.429 kcal e gasto por atividade física de 10,01 kcal/kg/dia. Houve grande variação individual: exceto um participante, todos recuperaram parte do peso, sendo que cinco atingiram ou superaram o original.
O achado mais notável foi o consumo energético em repouso: enquanto o modelo previa cerca de 2.400 kcal/dia após seis anos, a medição real foi 1.903 kcal/dia — 704 kcal/dia abaixo da linha de base.
Os autores concluíram que, seis anos após a competição, esse consumo estava aproximadamente 500 kcal/dia abaixo do esperado para a composição corporal e idade dos participantes, mostrando que a adaptação metabólica é proporcional, persistente e acentuada, mas incompleta. Em média, os participantes mantiveram perda de 11,9 kg em relação ao valor basal, indicando um resultado positivo, porém evidenciando que a manutenção de peso a longo prazo exige combate contínuo à adaptação metabólica.
Uma década após o artigo de 2012, o Dr. Hall publicou “Energy compensation and metabolic adaptation: ‘The Biggest Loser’ study reinterpreted”, no qual reinterpretou seus achados. Inicialmente, ele esperava que a adaptação metabólica substancial observada durante a competição — provavelmente resultante da drástica restrição calórica — retornasse a níveis mais estáveis após a perda de peso ativa. Contudo, seis anos depois, essa adaptação persistiu.
Hall destaca que os dados foram muitas vezes mal interpretados, gerando a narrativa de que dietas “destroem o metabolismo” e que intervenções de estilo de vida fracassam, quando, na verdade, os participantes mantiveram perda de peso clinicamente significativa (aproximadamente 12%) após seis anos. O gasto energético com atividade física permaneceu elevado, cerca de 80% acima da linha de base (395 kcal/dia). Curiosamente, a adaptação metabólica foi maior nos participantes com maior atividade física, que também mantiveram mais perda de peso inicial.
Paralelamente, estudos em caçadores-coletores fisicamente ativos mostraram que, apesar da alta atividade, o gasto energético total ajustado não era maior que o de ocidentais sedentários. Isso levou à formulação do modelo de gasto energético restrito, segundo o qual aumentos no gasto com atividade física provocam compensações em outros processos metabólicos.
Hall propõe duas hipóteses para a adaptação metabólica persistente: (1) o cenário extremo do reality show teria amplificado o efeito do modelo de gasto restrito; ou (2) o aumento sustentado da atividade física teria gerado reduções na taxa metabólica de repouso e, consequentemente, no gasto energético total.
Evidências adicionais indicam que, em populações gerais, maior gasto com atividade física correlaciona-se com menor taxa metabólica de repouso, especialmente em indivíduos com maior gordura corporal.
Revisão da obesidade
Adianto que, para esta seção, utilizei inúmeros artigos. Contudo, os principais nos quais me baseei são “Obesity: A Review of Pathophysiology and Classification” e “Psychological Issues Associated With Obesity”.
A obesidade é uma doença crônica complexa que afeta mais de um bilhão de pessoas e aumenta o risco de diabetes tipo 2, hipertensão, dislipidemia, doenças cardiovasculares e certos tipos de câncer.
Seus determinantes incluem fatores genéticos, sociais, ambientais, neurológicos, metabólicos, entéricos e comportamentais. A herdabilidade do IMC varia entre 40% e 70%, enquanto mutações monogênicas são raras (<1%), afetando principalmente a via leptina-melanocortina.
Estudos de associação genômica ampla (GWAS) — uma metodologia robusta para identificar variações genéticas correlacionadas a características e doenças específicas — identificaram centenas de variantes associadas a IMC, preferências alimentares e metabolismo, explicando apenas 5% da variabilidade interindividual, com interações gene-ambiente moduladas por dieta, tabagismo e atividade física.
O ambiente obesogênico — marcado por disponibilidade de alimentos palatáveis, padrões de consumo alterados e baixa atividade física — e fatores sociais, como pobreza, baixos níveis educacionais e desigualdade, contribuem para perpetuar a obesidade. Crianças de minorias raciais ou de lares monoparentais apresentam maior prevalência.
O balanço energético — consumo e gasto calórico — resulta de múltiplos mecanismos que regulam tanto a ingestão alimentar quanto o gasto energético. A comunicação entre cérebro, tecido adiposo e trato gastrointestinal envolve vias sensoriais e sinais hormonais e neurológicos, modulando apetite, comportamento alimentar e gasto energético.
O estômago desempenha papel central, fornecendo informações sobre a quantidade de alimento ingerido e controlando sua passagem para o intestino delgado por meio da distensão gástrica. Essa distensão ativa redes neurais, funcionando como retroalimentação negativa que reduz o apetite, independentemente do conteúdo calórico. A motilidade gástrica, que determina a velocidade de esvaziamento do estômago, também influencia saciedade, e alterações nesse processo estão associadas à obesidade e ao aumento da fome.
Diversos hormônios que influenciam a motilidade regulam a ingestão alimentar. Alguns deles são indutores de apetite (orexigênicos), como a grelina, enquanto outros promovem a saciedade (anorexigênicos), caso do peptídeo semelhante ao glucagon tipo 1 (mais conhecido como GLP-1).
O tecido adiposo também atua como modulador central, liberando leptina e adiponectina. A leptina sinaliza o estado nutricional e a saciedade, mas indivíduos com obesidade frequentemente apresentam resistência a esse hormônio. Já a adiponectina contribui para a estabilidade do peso. Seus níveis estão reduzidos em pessoas com obesidade e se associam à gordura visceral.
Igualmente relevantes são os fatores psicológicos, como estresse e sofrimento emocional, bem como experiências e traumas na infância, que podem predispor à obesidade. Nessas situações, a comida pode funcionar como mecanismo de enfrentamento e refúgio, levando a pessoa a recorrer repetidamente a esse hábito e, ao longo do tempo, ganhar peso.
E, antes que alguém afirme — erroneamente — que basta ter força de vontade e iniciar terapia, dieta ou exercícios, um mantra gordofóbico ainda comum nas redes, é preciso destacar que, quando a obesidade já está estabelecida, inúmeras alterações hormonais, estruturais e psicológicas contribuem para perpetuar a doença.
O corpo obeso vive em constante estado de estresse, o que gera alterações funcionais e anatômicas no cérebro, causando mudanças na comunicação cerebral que aumentam o prazer das recompensas e elevam a ansiedade e o medo. Isso resulta em uma resposta intensificada a estímulos recompensadores, como o consumo de alimentos calóricos e açucarados, tornando-os mais atrativos em momentos de estresse.
Fatores psicológicos, como insatisfação corporal e baixa autoestima, alimentam vergonha, culpa e isolamento social, dificultando mudanças de estilo de vida. O estigma e a discriminação — em saúde, trabalho e educação — agravam o sofrimento, favorecem comportamentos desadaptativos como a alimentação emocional e elevam o risco de transtornos de humor.
Em outras palavras, a ideia de que a obesidade seria apenas uma questão de escolha ou força de vontade — frequentemente propagada por coaches motivacionais nas redes sociais — é um discurso anticientífico e preconceituoso, adequado apenas para livros de autoajuda ou para vender cursos.
Redefinindo obesidade?
Em 2024, Grannell e Le Roux publicaram no International Journal of Obesity a perspectiva “Obesity as a disease: a pressing need for alignment”, argumentando que o IMC, embora útil para identificar tendências populacionais, apresenta limitações: não detecta indivíduos com peso “normal”, mas com excesso de gordura e risco elevado de doenças. Eles defendem um modelo que vá além do balanço energético, incorporando fatores genéticos, fisiopatológicos e de regulação do apetite.
Um ano depois, uma comissão liderada por Francesco Rubino, com 58 especialistas internacionais, propôs critérios objetivos para o diagnóstico da obesidade:
Obesidade clínica: doença crônica e sistêmica, caracterizada por alterações na função dos tecidos, órgãos ou em uma combinação desses fatores, devido ao excesso de adiposidade. Essa condição pode causar danos graves a órgãos-alvo, resultando em complicações potencialmente incapacitantes e com risco de vida.
Obesidade pré-clínica: estado de excesso de adiposidade com função preservada de outros tecidos e órgãos, apresentando risco variável, mas geralmente aumentado, de evoluir para obesidade clínica e para outras doenças crônicas não transmissíveis.
O IMC deve ser utilizado apenas em nível populacional e sempre complementado por medidas antropométricas, como a circunferência da cintura.
Para o diagnóstico de obesidade clínica, exige-se um dos dois critérios: (1) evidência de disfunção em órgãos ou tecidos relacionada à obesidade e/ou (2) limitações significativas nas atividades diárias.
Quanto ao tratamento, a prioridade é a melhora clínica e a prevenção de complicações. Já a obesidade pré-clínica demanda aconselhamento em saúde, monitoramento e, quando necessário, intervenções preventivas.
Por fim, a comissão ressalta que estratégias de saúde pública devem basear-se em evidências atualizadas e combater o estigma relacionado ao peso, uma vez que este constitui barreira crítica para a prevenção e o tratamento eficazes.
Considero que a nova definição cumpre dois papéis principais: deixa claro que a obesidade é uma doença séria e que indivíduos acometidos necessitam de tratamento como qualquer outra patologia; e evidencia que o estigma, tão perpetuado pelos discursos de coaches de estilo de vida, além de não auxiliar na resolução do problema, gera efeito contrário, afastando essas pessoas de tratamentos e profissionais que poderiam ajudá-las.
Mauro Proença é nutricionista