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Um propósito de vida: o lixo que vira comida

Injustiçado, pouco conhecido, dada a variedade de possibilidades na agricultura familiar, o feijão guandu (Cajanus cajan) é uma leguminosa especial. É alimento para seres humanos e serve também à ração animal. A força de sua raiz fortalece o solo. Tem ainda uma particularidade que o torna diferente de seus pares: dá em arbustos. Não por acaso, Guandu, o Instituto Guandu, foi o nome escolhido pela jornalista Fernanda Danelon para a empresa que criaria em 2012, atalho para um movimento que entusiasmou alguns dos principais restaurantes de São Paulo – e teria repercussão internacional.

A ideia, belas como são as inovações que nascem da simplicidade: o Guandu recolhia resíduos descartados pelas cozinhas para fazê-los adubo em hortas urbanas criadas para… para abastecer os próprios estabelecimentos. Era, na definição singela de Fernanda, um ciclo que ia do “prato ao prato”, pedacinho de solução para os 200 milhões de quilos de lixo orgânico produzido numa cidade como São Paulo. Dizia ela, nos primeiros anos do Guandu: “O conceito é o de transformar o lixo em comida. Uma revolução possível e que está literalmente nas mãos de quem trabalha com alimentos”. Houve genuína adesão. O primeiro a apostar no projeto foi o chef Alberto Landgraf, então no restaurante Epice. Depois, vieram outras reputadas casas paulistanas: Attimo, Jequitaia, Maní, Tête-à-Tête, Martin Fierro, Casa Jaya, Dona Vitamina, Freddy e uma coleção de outros endereços. O trabalho de Fernanda era assunto entre eles, porque lá vinha aquela moça sorridente, plena de sonhos, mão na massa e um objetivo: fazer o mundo melhor. Modesta, porque é assim que conduzia a vida, ria com inteligência do cotidiano do que criara. Em entrevista para o site Draft, Fernanda resumiu a empreitada: “Quando criei o Instituto Guandu eu não tinha milhões para investir, não tinha um plano de negócios, obviamente não tinha um fundo de investimentos. Mas eu sabia que eu tinha que começar de algum lugar. Falei com um ou dois restaurantes que já estavam mais sensibilizados com a causa e comecei a levar o lixo no porta malas do meu carro. Sou mãe, dona de casa, e quando eu vi, estava dirigindo pra lá e pra cá, levando as crianças, o gato, o cachorro e o lixo lá no porta malas. Eles falavam, ‘mãe, você tá com lixo no carro, olha esse fedor!’. Ninguém disse que ia ser fácil, mas eu tinha um propósito, não era um trabalho, era um propósito de vida.”

O Instituto Guandu foi fruto de interesse pessoal, mas no avesso do egoísmo, e também de aprimoramento e permanente preocupação de fazer de boas iniciativas ferramentas de política pública. Jornalista especializada em sustentabilidade, no início dos anos 2000, quando o tema não era tão ecoado como hoje, ela ingressou no grupo Hortelões Urbanos, pensando para a manutenção de hortas urbanas comunitárias, como a do Centro Cultural São Paulo e a da Praça do Ciclista, na avenida Paulista. Em 2011, ela entrou para a Frente Parlamentar pela Agroecologia e Agricultura Orgânica do Estado de São Paulo e integrou a criação do Muda-SP (Movimento Urbano pela Agroecologia) e da Frente Municipal pela Sustentabilidade. Durante uma oficina de compostagem, se aproximou de alguns chefs – e o resto é história.  “A ideia que eu precisava para criar o Instituto Guandu tinha se materializado”, disse ela. “Comecei com a missão de atender os restaurantes inclusive para cultivar produtos de qualidade para eles. Muitos precisavam de ervas, folhas e outros vegetais que nem sempre conseguiam encontrar nos mercados”. Fernanda Danelon – de personalidade discreta e calma, personagem que talvez só pudesse brotar em São Paulo – era especial como o guandu. Gostava de um poema de Fernando Pessoa, que de algum modo ditou seu caminho: “Segue teu destino/Rega as tuas plantas/Ama as tuas rosas/O resto é sombra/De árvores alheias/”. Fernanda Danelon morreu em 5 de setembro, aos 52 anos, de câncer. 

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