Ultraprocessado vicia? Já escrevi aqui, na Revista Questão de Ciência, sobre os malefícios do açúcar, mas ressaltei que causar vício não estava entre eles. Muitos dos pontos levantados naquela ocasião continuam válidos, e dois merecem destaque especial para contextualizar o assunto.
O primeiro é a própria definição de vício, que pode ser entendida — de forma não tão resumida — como o uso de certas substâncias ou a prática de comportamentos capazes de gerar prazer ou aliviar dor, ansiedade e estresse, mas que acabam por “sequestrar” o sistema de recompensa do cérebro. Isso leva à compulsão (uso repetido, apesar de consequências negativas), síndrome de abstinência (sintomas físicos e emocionais quando o uso é interrompido) e fissura (desejo intenso após a abstinência).
Além disso, para que uma pessoa seja diagnosticada com transtorno por uso de substâncias, é necessário que apresente um padrão patológico de comportamentos agrupados em quatro domínios: baixo controle (falha em cessar ou reduzir o uso; tempo excessivo dedicado à obtenção ou consumo), prejuízo social (dificuldades no trabalho ou abandono de atividades), uso arriscado (danos físicos ou psicológicos; exposição a riscos para obter a substância) e critérios farmacológicos (tolerância e abstinência).
O segundo desafio é medir o suposto vício em alimentos. Para isso, pesquisadores de Yale desenvolveram a Escala de Dependência Alimentar de Yale 2.0 (YFAS 2.0) — e sua versão modificada (mYFAS) — , um questionário de 35 itens que avalia 11 sintomas de dependência associados a alimentos ricos em açúcar, sal, gordura ou amido, considerando comportamentos dos últimos 12 meses, como “continuar comendo mesmo sem fome”.
Entre as limitações estão a sobreposição com transtornos como bulimia e compulsão alimentar, e o fato de ser baseado em autorrelato. Para uma avaliação mais robusta, é preciso associar esses relatos a mecanismos biológicos, cognitivos e comportamentais.
Nos últimos 14 meses, várias pesquisas tentaram esclarecer essa associação. O estudo mais recente foi publicado sob o título “Brain dopamine responses to ultra-processed milkshakes are highly variable and not significantly related to adiposity in humans”. Os pesquisadores concluíram que o consumo de milkshake (um alimento ultraprocessado) não resultou em aumento significativo do neurotransmissor dopamina no sistema de recompensa do cérebro. Além disso, as respostas, altamente variáveis entre os indivíduos, não apresentaram relação significativa com adiposidade.
Havia a hipótese de que, se os ultraprocessados fossem realmente “viciantes”, uma bomba de açúcar e gordura como o milkshake deveria gerar um aumento abrupto nos níveis de dopamina, semelhante ao que ocorre com drogas ou outras atividades prazerosas.
Além disso, como as respostas observadas não se relacionaram com a adiposidade dos participantes, o estudo sugere que indivíduos com sobrepeso ou obesidade não apresentam níveis elevados de dopamina nem se encontram nesse estado devido a um suposto vício em ultraprocessados.
Infelizmente, o que poderia ter sido apenas mais um capítulo na saga dos ultraprocessados — e uma ressalva sobre a necessidade de cautela antes de sairmos gritando aos quatro ventos se esses alimentos são ou não viciantes (na minha opinião, não; embora compreenda os pesquisadores que utilizam o termo, tão banalizado) — acabou ganhando um contorno obscuro e até com requintes ditatoriais.
Para os que não acompanharam mais um episódio da “maior democracia do mundo”, um dos autores do estudo, Dr. Kevin Hall, que trabalhava no NIH (principal agência de pesquisa médica dos EUA), afirmou ter sido censurado, já que eles contrariavam a visão obscurantista do atual ministro da Saúde, Robert F. Kennedy Jr., que desde que assumiu o cargo iniciou uma cruzada quase religiosa contra os ultraprocessados sob o slogan “Make America Healthy Again”.
RFK Jr. não quer que você saiba
Em 4 de abril, Hall apareceu em matéria de The New York Times, escrita pela jornalista e PhD em Nutrição Alice Callahan, intitulada “Leading Nutrition Scientist Departs N.I.H., Citing Censorship”. Nela, Hall explica sua decisão de deixar o NIH em resposta à intromissão de autoridades federais em seu trabalho.
Em um caso, Hall afirma ter sido impedido de falar livremente com repórteres sobre um estudo que poderia ser interpretado como contradizendo a posição de Kennedy sobre a suposta natureza viciante dos ultraprocessados.
Em outro episódio, funcionários do NIH teriam informado que ele não poderia aparecer como autor em uma revisão ainda não publicada sobre ultraprocessados, porque algumas seções abordavam “equidade em saúde”, reconhecendo que parte da população nos EUA não tem acesso a alimentos saudáveis. Segundo o NIH, essa discussão poderia não estar alinhada às visões do presidente Trump sobre diversidade, equidade e inclusão; para permanecer como autor, Hall deveria modificar essas seções, o que o levou a retirar seu nome.
Quando o estudo que sugeria que ultraprocessados não seriam viciantes da mesma forma que algumas drogas foi publicado, o New York Times solicitou uma entrevista por telefone. O NIH negou o pedido, permitindo apenas que ele respondesse por escrito.
Segundo Hall, suas respostas foram editadas, sem sua permissão, pelo escritório de imprensa do NIH, que enfatizou as limitações do estudo e minimizou sua importância. Diante desse ultraje, ele enviou um e-mail a Kennedy e a Jay Bhattacharya, atual diretor do NIH. No e-mail, Hall expressou suas preocupações sobre a censura e destacou a paralisação de suas pesquisas nos últimos meses, resultado do congelamento de gastos e contratações.
É claro que alguém poderia argumentar que o ocorrido não configurou censura, mas sim uma atuação responsável do governo para evitar a divulgação de resultados potencialmente fraudulentos ou enviesados — quase como se Hall fosse tratado como um agente da indústria alimentícia.
Para deixar claro, Hall trabalhou no NIH por 21 anos, sendo considerado um dos grandes nomes da nutrição atualmente. Em seu extenso currículo há pesquisas bastante relevantes, como um estudo de 2011 com participantes do reality show The Biggest Loser — que, curiosamente, acaba de ganhar um documentário na Netflix, tema que pretendo abordar em outro artigo — no qual ajudou a explicar o porquê de muitos deles recuperarem peso após o programa.
Mais recentemente, em 2019 — estudo que revisamos aqui na RQC —, ele e sua equipe conduziram um ensaio clínico randomizado e controlado, dividindo participantes em dois grupos: um recebendo uma dieta composta exclusivamente por alimentos ultraprocessados e outro com uma dieta formada apenas por alimentos in natura e minimamente processados. Verificou-se que o grupo dos ultraprocessados apresentou um consumo energético, em média, 508 kcal maior do que o grupo controle — algo que, acredito, deve ter deixado o secretário Kennedy bastante satisfeito, já que corroborava suas posições ideológicas.
Apesar disso, e do meu claro posicionamento contrário a quase todas as ideias de RFK Jr., devo ser justo: a noção de que os alimentos ultraprocessados podem ser viciantes não é exclusividade da extrema direita.
Na verdade, essa ideia ressoa em diferentes campos ideológicos e reflete a opinião de muitos especialistas no assunto, como David Kessler — pediatra, advogado e ex-diretor da FDA que liderou a ofensiva contra as empresas de tabaco nos anos 1990 —, que recentemente publicou o livro “Diet, Drugs and Dopamine: The New Science of Achieving a Healthy Weight”. Na obra, Kessler relata sua própria jornada de perda de peso, discute como os medicamentos GLP-1 estão transformando a forma de combater a obesidade e propõe uma nova nomenclatura para os ultraprocessados: alimentos “ultraformulados”.
Para Kessler, o problema não está nos ingredientes industriais em si (como emulsificantes e conservantes), mas em duas frentes principais: (1) a combinação de açúcar, gordura e sal, que gera hiperpalatabilidade e afeta os sistemas de recompensa do cérebro, levando ao suposto vício; e (2) o processamento dos alimentos, que, além de reduzir nutrientes, também os torna “pré-digeridos”, facilitando a absorção rápida.
Afinal, vicia ou não?
A noção de “vício em comida” não é nova. Na verdade, como descrito no artigo “The Journal of Inebriety (1876–1914): history, topical analysis, and photographic images” — um periódico voltado ao estudo dos vícios —, a primeira menção a um possível vício alimentar data de 1890, quando um dos artigos publicados fez referência a um suposto efeito “aditivo” do chocolate.
Entretanto, o conceito de “vício em comida” — como antecessor do termo que conhecemos hoje — surgiu apenas em 1955, no artigo “The Descriptive Features of Food Addiction: Addictive Eating and Drinking”, de autoria do médico e alergista Theron Randolph.
Randolph descreve o vício alimentar como uma adaptação específica a um ou mais alimentos consumidos regularmente, aos quais a pessoa apresenta alta sensibilidade. Em resumo, seria uma espécie de “alergia alimentar às avessas”; em vez de manifestar sintomas típicos de reações alérgicas, o indivíduo exibe sinais semelhantes aos observados em processos de dependência, como abstinência e necessidade de doses cada vez maiores.
Segundo Randolph, os alimentos mais frequentemente envolvidos nesse processo seriam milho, trigo, café, leite, ovos, batatas e outros itens de consumo cotidiano. Mesmo naquela época, ele já distinguia entre alimentos não refinados (in natura ou minimamente processados) e refinados, vendo maior risco no segundo grupo.
Trazendo o debate para um momento mais atual, há inúmeros — e digo inúmeros mesmo — artigos que analisaram a possível relação entre o consumo de ultraprocessados e o vício. Uma das principais vozes que defendem a alegação de que ultraprocessados são viciantes é a doutora em psicologia clínica, cocriadora da Yale Food Addiction Scale e professora associada de psicologia clínica da Universidade de Michigan, Ashley Gearhardt.
Em entrevista ao podcast Speaking of Psychology, em 2022, Gearhardt afirma que os ultraprocessados são produtos industriais projetados para serem hiperpalatáveis e que não ativam os sinais de saciedade como os alimentos in natura.
Diferentemente da lógica de que apenas os ultraprocessados gerariam esse possível efeito viciante, Gearhardt defende que até mesmo alimentos processados (aqueles que poderiam ser preparados em casa), como pães caseiros e outras preparações que incluem carboidratos refinados e/ou gorduras adicionadas, podem ser considerados “viciantes”.
Ela ainda pontua que, embora alguns pesquisadores discordem da ideia de que a comida possa ser viciante — visto que, diferentemente de outras drogas, não se sabe qual seria a substância causadora do vício —, os ultraprocessados seguem, à sua maneira, o mesmo caminho traçado pelo tabaco, no qual as características do vício estão presentes: perda de controle, desejo intenso e uso contínuo apesar das consequências negativas.
Tratando, agora, das evidências científicas, acredito que o artigo “Ultra-Processed Food Addiction: A Research Update” seja um dos mais abrangentes na área. Trata-se de uma revisão detalhada sobre os avanços recentes na compreensão empírica do vício em alimentos ultraprocessados (UPFs, na sigla em inglês), focando em quatro aspectos centrais: (1) estimativas de prevalência do vício em UPFs na população global e disparidades em saúde; (2) pesquisas recentes sobre fundamentos biológicos e características comportamentais do vício em UPFs; (3) implicações do vício em UPFs para o manejo de peso; e (4) próximos passos para pesquisa clínica e tratamento, visando compreender o vício em UPFs tanto no contexto da obesidade quanto como uma apresentação clínica distinta — apesar da terminologia elegante, trata-se de uma revisão narrativa.
Embora a revisão apresente um vasto escopo de investigações, os principais destaques dos pesquisadores são que estudos conduzidos em humanos constataram que o consumo crônico e elevado de ultraprocessados por pessoas consideradas “viciadas” está associado a um aumento do impulso hedônico — aquela fome motivada pelo prazer e por outros sentimentos, e não pela fome física — por UPFs, evidenciando sinalização dopaminérgica prejudicada, desregulação dos hormônios da fome e saciedade e alterações no microbioma intestinal relacionadas ao risco de obesidade.
A revisão ainda ressalta que evidências emergentes sobre a utilidade clínica do vício em UPFs em pessoas com sobrepeso ou obesidade foram observadas a partir de um grande ensaio clínico randomizado e controlado, considerado por eles o mais relevante clinicamente sobre esse possível vício nessa população.
Trata-se do estudo “Baseline Psychosocial and Demographic Factors Associated with Study Attrition and 12-Month Weight Gain in the DIETFITS Trial”, que analisou fatores associados à desistência da dieta e ao ganho de peso em um ensaio clínico com 609 adultos com sobrepeso ou obesidade. O DIETFITS comparou duas dietas saudáveis (baixa em gordura vs. baixa em carboidratos) durante 12 meses, sem diferenças médias na perda de peso entre os grupos (aproximadamente 5–6 kg).
A intervenção consistiu em 22 sessões em grupo conduzidas por nutricionistas, abordando alimentação saudável, autogerenciamento e apoio comportamental. A análise de desistência considerou a amostra total de 609 participantes, enquanto a análise do ganho de peso incluiu 436 participantes que tinham medidas de peso tanto na linha de base quanto aos 12 meses.
Entre os 173 indivíduos que abandonaram as dietas, os fatores associados foram menor escolaridade, idade mais jovem, expectativas irreais, baixo autocontrole, maior dependência alimentar e menor apoio social. Entre os 436 que completaram a intervenção, 18% apresentaram ganho de peso.
Os autores concluem que, dentre todas as variáveis analisadas, o vício alimentar, avaliado por meio da Yale Food Addiction Scale, destacou-se como a variável psicossocial mais consistente associada ao insucesso.
Antes de abordar as limitações do estudo — que são numerosas —, é importante enfatizar a necessidade de consultar sempre a fonte original. A revisão narrativa citava os resultados como provenientes de um “grande estudo randomizado e controlado”, mas isso é apenas parcialmente correto. A pesquisa original do DIETFITS, que investigou qual dieta seria mais eficaz na mudança de peso, era de fato randomizada e controlada. Porém, a análise sobre vício que examinamos é secundária, o que impede inferências causais. Ela apenas sugere possíveis correlações.
Quanto às limitações do estudo, além do caráter observacional, os autores destacam que os achados não são generalizáveis a outras populações, visto que a amostra era majoritariamente composta por indivíduos brancos não hispânicos, com alto nível educacional, com até 50 anos e sem problemas de saúde, doenças ou uso de medicamentos que pudessem afetar o peso corporal ou gasto energético.
As variáveis foram avaliadas por meio de escalas psicossociais autorrelatadas respondidas online, o que pode impactar a qualidade das respostas e introduzir vieses. Outro ponto é que os participantes precisaram responder a 322 questões psicossociais em uma única semana na linha de base, o que possivelmente gerou fadiga e reduziu a precisão.
Acredito que tenha ficado claro, mas vale reforçar: este estudo não comprovou que alguns pacientes são obesos devido a um suposto vício em ultraprocessados, e muito menos forneceu evidências concretas de que o “vício” realmente exista.
Infelizmente, isso não impediu que as pesquisadoras LaFata e Gearhardt — junto a outras duas colegas — ganhassem espaço na mídia ao publicar, neste ano, na Nature Medicine, a correspondência intitulada “Now is the time to recognize and respond to addiction to ultra-processed foods”.
Nessa correspondência — um tipo de publicação muito menos rigorosa do que uma pesquisa e de caráter opinativo — elas defendem que certos ultraprocessados podem desencadear comportamentos aditivos semelhantes aos transtornos por uso de substâncias, apoiando-se em estudos de neuroimagem e em quase 300 trabalhos, de 36 países, que documentam padrões de consumo típicos de dependência química. Ressaltam ainda que a hipótese já é aceita por parte da comunidade científica, embora o vício em ultraprocessados não seja reconhecido formalmente pelo DSM ou pela CID.
Embora ainda existam pontos em aberto, as pesquisadoras sugerem que, diante da robustez das evidências disponíveis, formuladores de políticas públicas e a comunidade científica reconheçam o potencial aditivo dos ultraprocessados e suas consequências.
Apesar de afirmarem que as evidências são sólidas e suficientes para sustentar o caráter viciante desses alimentos, comparável ao das drogas, considero que o estudo de Hall levantou ainda mais questionamentos — para não dizer que desmontou, ao menos em parte, a narrativa construída.
Contraprova
Publicado em março de 2025 no Cell Metabolism, o estudo avaliou respostas de dopamina cerebral a partir de 30 minutos após o consumo de milkshakes ultraprocessados, ricos em gordura e açúcar.
O estudo foi conduzido entre setembro de 2018 e fevereiro de 2023, período que incluiu restrições associadas à pandemia. A amostra inicial contou com 61 adultos, com peso estável no último mês, com idade entre 18 e 45 anos e IMC ≥ 18,5 . Nenhum participante tinha histórico de cirurgia bariátrica, uso de drogas nos últimos 12 meses, alergias alimentares, distúrbios metabólicos ou neurológicos, nem havia consumido álcool ou cafeína em excesso nos últimos seis meses.
Os voluntários foram submetidos a uma dieta normocalórica (50% carboidratos, 15% proteínas e 35% gorduras), com todas as refeições preparadas na Cozinha Metabólica do Departamento de Nutrição do NIH Clinical Center, pesadas individualmente, durante um período de 3 a 5 dias de estabilização.
Em seguida, os participantes iniciaram a fase de internação, com duração de cinco dias. O nível-base de dopamina, avaliado por tomografia cerebral, foi determinado nesse período.
A medição pós-milkshake envolveu um produto com 418 kcal, sendo 60% provenientes de gorduras e 17,2% de açúcares. O protocolo foi realizado da seguinte forma: inicialmente, os participantes passaram por uma análise de PET em jejum de 75 minutos, seguida de 75 minutos de descanso. Considerando a última refeição da noite anterior, os voluntários permaneceram em jejum prolongado por aproximadamente 17 a 18 horas.
Após esse período, os milkshakes foram servidos gelados, em copos opacos com canudo, e os participantes tiveram cinco minutos para consumi-los. Imediatamente após, responderam a perguntas sobre percepção neurossensorial e hedônica, como “Quanto o milkshake foi agradável?” (0 = neutro, 100 = extremamente agradável) e “Quanto você gostaria de consumir mais milkshake?”, entre outras. Também relataram sensação de fome antes e após o consumo, e completaram o YFAS. Aproximadamente 30 minutos depois, foi realizada a segunda e última análise de PET do dia.
Os resultados não mostraram diferenças significativas na dopamina entre o estado de jejum e após oconsumo do milkshake.
Quanto à segunda hipótese, que previa respostas dopaminérgicas atenuadas em indivíduos com maior adiposidade — já que algumas teorias sugerem que pessoas obesas podem apresentar um sistema de recompensa “descompensado” —, verificou-se que o IMC apresentou apenas tendência fraca.
Após ajustes por idade e gênero, nenhuma relação significativa entre IMC e resposta dopaminérgica foi identificada. De forma semelhante, massa gorda absoluta, percentual de gordura corporal, ingestão energética ajustada pelo gasto energético basal, glicemia e insulina em jejum, bem como sensibilidade à insulina, não se correlacionaram significativamente com a resposta do cérebro ao milkshake.
Curiosamente, embora a fome percebida após o jejum noturno não tenha se relacionado significativamente à adiposidade, ela apresentou correlação moderada com a resposta dopaminérgica ao milkshake. A variação da fome entre os estados de jejum e pós-ingestão também se correlacionou com a liberação de dopamina: quanto maior a supressão da fome pelo milkshake, maior a liberação observada.
O consumo do milkshake elevou a glicose e a insulina sanguíneas em 30 e 90 minutos pós-ingestão, mas nem os aumentos absolutos nem as taxas de variação se correlacionaram com as respostas dopaminérgicas.
Na noite anterior ao último dia de internação, os participantes realizaram jejum entre o jantar (18h30) e o almoço do dia seguinte (12h), reproduzindo as condições pré-milkshake. Nessa ocasião, foi oferecido um buffet contendo mais de 6000 kcal, com variedade de alimentos. Os voluntários foram instruídos a comer à vontade. A ingestão energética foi calculada após a pesagem dos alimentos restantes e ajustada pelo gasto energético de repouso (GER) medido durante a internação.
Nesta última etapa, observou-se que a ingestão total de energia ajustada pelo gasto energético em repouso (GER) não se correlacionou com a resposta dopaminérgica total ao milkshake.
Ao separar a ingestão energética entre os cookies de chocolate — único item ultraprocessado do buffet, rico em gordura e açúcar — e os demais alimentos, verificou-se que a ingestão de cookies apresentou tendência de correlação fraca com a resposta dopaminérgica total. Em contraste, a ingestão energética proveniente dos demais alimentos não se relacionou com a dopamina.
Os autores concluem que a interpretação mais plausível dos achados é que o consumo de milkshakes produz pequenas, porém altamente variáveis, alterações na dopamina, não relacionadas à adiposidade, mas possivelmente associadas à fome percebida e a respostas hedônicas. É importante esclarecer que os resultados não desconsideram a experiência de indivíduos que relatam dificuldade em controlar o consumo desses alimentos — tampouco afirmam que o efeito viciante não exista —, mas questionam a narrativa de que respostas dopaminérgicas equivalentes às geradas por drogas ilícitas seriam a principal causa do consumo excessivo de ultraprocessados.
Obviamente, a pesquisa apresenta limitações. Não foi utilizado um grupo controle — por exemplo, um milkshake minimamente processado com nutrientes equivalentes — para comparar as respostas dopaminérgicas. Em minha opinião, essa foi a limitação mais relevante.
Além disso, a tomografia por PET mostra apenas um instante da variação de dopamina, resultante do equilíbrio entre liberação e depuração. É possível que a magnitude da depuração tenha superado a liberação em resposta ao milkshake, explicando os baixos valores observados.
A grande questão permanece: os ultraprocessados viciam? Se adotarmos a definição da NOVA, considerando qualquer alimento com ingredientes e processos industriais como ultraprocessado, mas sem analisar a composição nutricional, a resposta é simples: não.
Quando se considera a subcategoria de alimentos ricos em açúcar, gordura e, frequentemente, sódio, a questão se torna mais complexa. Até o momento não há evidências convincentes de que exista um vício nesses produtos; mas isso não significa que seja impossível.
O que se pode afirmar com base mais sólida é que a comparação frequentemente usada, alegando que ultraprocessados são tão viciantes quanto drogas de abuso, é uma hipérbole descabida. Os ultraprocessados são problemáticos por diversos motivos: marketing direcionado a crianças, densidade calórica elevada, composição rica em ingredientes que deveriam ser consumidos com moderação, entre outros fatores que contribuem para sobrepeso e obesidade. Contudo, vício, pelo menos da forma como o entendemos, não parece ser um deles — pelo menos até o momento.
Dito isso, é importante reconhecer que algumas pessoas podem vivenciar uma situação muito difícil, na qual não conseguem reduzir ou controlar o consumo desses alimentos, e isso pode gerar prejuízos em diferentes aspectos de sua vida. Não é possível afirmar, neste contexto, que se trata de vício, transtorno ou outro fenômeno; o que se sabe é que, nesses casos, buscar ajuda profissional é a forma mais adequada de lidar com a situação e minimizar danos.
Mauro Proença é nutricionista