counter Renda e sustentabilidade: Recife usa economia circular para promover inclusão social – Forsething

Renda e sustentabilidade: Recife usa economia circular para promover inclusão social

Transformar lixo em oportunidade não é apenas um slogan: é o que acontece todos os dias numa oficina de reciclagem do bairro São José, região central de Recife. Entre fardos de plástico prensado, pilhas de papelão e alumínio, histórias de sobrevivência se encontram com inovação. A iniciativa da Ambipar, parte do programa Cidades Circulares, propõe mais do que reciclar: quer educar, gerar renda e inspirar novas práticas urbanas.

Ali, cada garrafa coletada representa menos poluição nos rios, mais renda para famílias e um passo rumo a um modelo de cidade que aprende a conviver com seus resíduos e a transformá-los em futuro. Ex-catadores, jovens aprendizes e antigos moradores de áreas vulneráveis dividem o mesmo espaço, trocam experiências e descobrem novas formas de sustento. No calor das prensas e no vaivém das esteiras, o que antes era descartado ganha novo valor, e a cidade começa a entender que circularidade não é apenas um conceito, mas um caminho possível para reinventar a vida urbana.

Recife, cortada por rios e canais, convive há décadas com o desafio de administrar o próprio lixo. Só em 2024, segundo dados da Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana, mais de 1,5 milhão de toneladas de resíduos sólidos foram recolhidas na cidade, grande parte com destino a aterros sanitários ou, pior, às margens das vias e cursos d’água.

A situação da gestão de resíduos sólidos no Brasil é ainda mais complexa: segundo dados do Panorama Nacional de Resíduos, apenas 21% do lixo produzido no país é efetivamente reciclado, e mais de mil lixões ainda operam de forma irregular em diversas regiões. Essa realidade evidencia desigualdades sociais, riscos ambientais e a urgência de soluções estruturais que integrem população, setor privado e políticas públicas.

Nos bairros periféricos, a coleta irregular e o descarte a céu aberto agravam enchentes e problemas de saúde. Nesse cenário, iniciativas como a Cooperativa de Trabalho Reciclando Vidas surgem não apenas como solução ambiental, mas como resposta social urgente. Ao integrar capacitação profissional, geração de renda e reaproveitamento de materiais, o projeto ataca, de forma prática, um problema estrutural que afeta tanto o centro quanto as franjas urbanas da capital pernambucana.

Em parceria com empresas como Dow, Heineken e Tetra Pak, a Ambipar visa transformar a gestão de resíduos urbanos em um motor de inclusão social. Em Recife, o projeto já capacitou 228 profissionais de cooperativas de reciclagem. Além disso, a instalação de um centro de reciclagem de vidro em Jaboatão dos Guararapes, com investimento de R$ 8 milhões, integra 10 cooperativas e gera cerca de 60 empregos diretos e indiretos.

Continua após a publicidade

A reportagem visitou o local como parte da Expedição VEJA, que está rodando o Brasil para conhecer projetos inovadores de sustentabilidade e destacar temas relacionados à agenda da COP30, a Conferência do Clima da ONU que acontecerá em novembro em Belém, no Pará.

Maíra Pereira, diretora de Relações Institucionais Pós-consumo da Ambipar: reciclagem pode mudar a realidade social do país
Maíra Pereira, diretora da Ambipar: reciclagem pode mudar a realidade social do paísClaudio Gatti/VEJA

Maíra Pereira, diretora de Relações Institucionais Pós-consumo da Ambipar, destaca a capacidade transformadora da reciclagem: “Nosso objetivo vai muito além da reciclagem: queremos mostrar que cada resíduo é uma oportunidade de transformação, tanto para o meio ambiente quanto para as pessoas que fazem parte dessa cadeia. Cidades circulares não são só um conceito, elas começam a ganhar vida em projetos como este”.

Segundo Maíra, a Oficina Reciclagem é apenas uma parte do ecossistema de soluções da Ambipar. “Com a franquia social, conseguimos ampliar o impacto, levando conhecimento, treinamento e estrutura para outras comunidades que ainda não têm acesso a essas oportunidades”.

Continua após a publicidade

Cada franquia social funciona como um polo de geração de renda e educação ambiental. Não se trata apenas de recolher resíduos, mas de capacitar pessoas, criar empregos e transformar realidades locais. “É um modelo que pode ser replicado em diversas cidades, sempre adaptado à realidade de cada comunidade”, acrescenta.

“Nosso compromisso é que ninguém fique de fora. Queremos que famílias inteiras vejam o potencial do que antes era descartado e que entendam que o futuro das cidades depende da forma como lidamos com os recursos que já temos”, conclui.

Dentro do galpão da Oficina Reciclagem, cada canto tem propósito. Entre esteiras de plástico triturado, mesas cheias de tampas coloridas e fardos de papelão, catadores e jovens aprendizes trabalham lado a lado.

Pilhas de resíduos organizados dentro da cooperativa: cada material separado representa matéria-prima pronta para a reciclagem e oportunidades de renda para os cooperados do projeto Cidades Circulares
Pilhas de resíduos organizados dentro da cooperativa: cada material separado representa matéria-prima pronta para a reciclagem e oportunidades de renda para os cooperados do projeto Cidades CircularesClaudio Gatti/VEJA
Continua após a publicidade

Mateus Santos, 19, um dos recicladores mais jovens do projeto, viu a renda se multiplicar por quatro, superando os R$ 2.000 desde que a oficina passou a integrar o projeto da Ambipar. “Cada material que a gente organiza aqui vira algo novo lá fora”, diz, apontando para uma pilha de PET pronto para ser enviado a indústrias parceiras.

O projeto, iniciado em Recife em março de 2024, já apoiou diretamente 10 cooperativas e 146 profissionais da reciclagem, implementando o modelo de Franquia Social da Ambipar, com diagnóstico inicial, reestruturação de fluxos, capacitação em governança e operação, protocolos para segregação de plástico e vidro, além de investimentos em infraestrutura e apoio à articulação institucional. Entre os profissionais capacitados, 70% são mulheres e 27% já recebem acima do salário mínimo, fortalecendo políticas de equidade no setor.

Na Cooperativa Reciclando Vidas, por exemplo, o número de profissionais cresceu de 13 para 16, enquanto o volume de material recuperado passou de 30 para 35 toneladas por mês. A eficiência da triagem aumentou de 31 kg/hora para 36 kg/hora por cooperado, mantendo 22 diferentes tipologias de resíduos segregados e comercializados. A renda média dos cooperados passou de R$ 508 em março de 2024 para quase R$ 2.000 em fevereiro de 2025, aumento real de 279%, muito acima da inflação do período.

Além dos impactos econômicos, o projeto tem resultados sociais e ambientais claros: o volume total de recicláveis recuperados no ecossistema recifense atingiu 19,1 toneladas/mês na primeira fase, com potencial de superar 3.000 toneladas/ano. O mix de materiais é diversificado: 64% papel, 18% plástico, 8% vidro e 10% metal, mostrando aprimoramento da triagem e da comercialização. Paralelamente, a Ambipar apoia a melhoria de infraestrutura, a adoção de protocolos operacionais, a otimização da coleta seletiva e a implementação de ações de educação ambiental comunitária.

Continua após a publicidade

Esmeraldo Emílio, 44, e a mulher, Eunice, 51: casal hoje tem orgulho de trabalhar na transformação de resíduos
Esmeraldo Emílio, 44, e a mulher, Eunice, 51: casal hoje tem orgulho de trabalhar na transformação de resíduosClaudio Gatti/VEJA

O projeto também se articula com políticas públicas locais: parcerias estratégicas com a Prefeitura de Recife, a EMLURB e o Tribunal de Contas do Estado contribuem para o fechamento de lixões e para a elaboração do Plano Municipal de Gestão de Resíduos Sólidos.

Para José Mário Antonino, diretor executivo da EMLURB, a força do projeto está na articulação entre setor público e privado. “O projeto Cidades Circulares é um exemplo de como parcerias entre setor público e privado podem transformar a gestão de resíduos em Recife. Sem essa articulação, seria mais difícil atingir eficiência operacional e impacto social simultaneamente”, afirma.

Segundo ele, a Ambipar traz conhecimento técnico, investimento e inovação, enquanto a Prefeitura e a EMLURB oferecem infraestrutura, regulação e integração com políticas públicas. “Juntos, conseguimos implementar um modelo que beneficia tanto a cidade quanto os trabalhadores da reciclagem”, completa.

Continua após a publicidade

O diretor reforça que a colaboração é estratégica e replicável. “Essa parceria demonstra que soluções de economia circular não dependem apenas de empresas ou governos isoladamente. Quando unimos esforços, conseguimos fechar o ciclo do lixo e transformar comunidades”. Para Antonino, o objetivo vai além do impacto local. “O apoio às cooperativas, aliado à capacitação e ao fortalecimento de processos de governança, mostra que a gestão sustentável de resíduos pode ser lucrativa, inclusiva e ambientalmente responsável”.

Além da profissionalização, o Cidades Circulares investe na educação ambiental da população. Campanhas e oficinas de conscientização são realizadas para incentivar a separação de resíduos nos domicílios e estimular o consumo consciente. Cada ação é pensada para conectar moradores, cooperativas, indústria e poder público, criando um ecossistema que sustenta a economia circular na prática.

Os resultados econômicos já são evidentes. Nas cooperativas apoiadas, a segregação padronizada de materiais aumentou o valor de venda e a eficiência comercial. A receita bruta acompanha a melhora da produtividade e da inclusão produtiva, enquanto o volume total de recicláveis recuperados em Recife demonstra que o modelo pode se expandir sem comprometer a qualidade operacional.

O projeto projeta metas ambiciosas para 2026: ampliar a capacidade produtiva das centrais de triagem em mais de 20%, fortalecer a articulação regional e estender o modelo a outras cidades do Nordeste, contribuindo para desafios ainda latentes, como a baixa cobertura da coleta seletiva.

Mais do que cifras e estatísticas, o Cidades Circulares representa uma mudança de paradigma. Em Recife, o lixo deixa de ser apenas descartável e se transforma em esperança, aprendizado e oportunidade. Cada garrafa, cada pedaço de papel, cada fragmento de vidro separado pelas mãos dos cooperados é um gesto de futuro, uma cidade que aprende a dar valor ao que antes era desprezado.

E mostra que inovação, inclusão e sustentabilidade podem caminhar juntas, e que, mesmo nos resíduos, há potencial para renascimento: vidas, comunidades e a própria cidade se reinventam, provando que circularidade é, acima de tudo, justiça social.

Chegada de caminhões com resíduos: integração entre cooperativas, poder público e empresas garante fluxo contínuo de materiais recicláveis e eficiência operacional.
Chegada de caminhões com resíduos: integração entre cooperativas, poder público e empresas garante fluxo contínuo de materiais recicláveis e eficiência operacionalClaudio Gatti/VEJA
Publicidade

About admin