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Escritor que se infiltrou nas altas rodas de coaches revela a VEJA segredos da ‘manosfera’

O escritor britânico James Bloodworth passou cerca de sete anos mergulhado numa pesquisa desagradável: decifrar a manosfera, um ambiente habitado por gurus, coachesinfluencers e suas enormes audiências que destila ódio às mulheres e a muitas coisas mais. Desse período, um bom naco foi dedicado à imersão de corpo e alma nesse ambiente em que a narrativa é a de que o sexo feminino manipula o masculino o tempo todo para dominá-lo, em um planeta tomado pelo feminismo. A parceira perfeita seria aquela de perfil obediente, que entende o homem como o chefe da casa, não usa roupas curtas e exala delicadeza, um mergulho no túnel do tempo recheado de preconceito e sustentado pela face mais perversa do conservadorismo. Bloodworth, 42 anos, conviveu com alguns dos principais nomes da manosfera dos Estados Unidos, incluindo o artista da sedução Anthony “Dream” Johnson, participou de vários congressos pululantes de cabeças com bonés de slogan “Make Women Great Again“, e até trabalhou como “instrutor” em um curso sobre como atrair garotas. (A foto do coach titular no Instagram, Michael Sartain, o mostra cercado por mulheres seminuas.) O resultado da pesquisa foi o recém-lançado Lost Boys: A Personal Journey Through the Manosphere, ainda sem tradução para o português, livro que conta como meninos se perdem e radicalizam nos abismos das redes sociais, sobre o qual Bloodworth conversou com VEJA na seguinte entrevista.

Como o senhor define a “manosfera”?  São subculturas masculinas antifeministas, a maioria cultivadas em ambientes digitais. Acho que esse é o sentido mais claro da palavra. Às vezes me deparo com descrições mais amplas, que incluem figuras como o gigante dos podcasts Joe Rogan e afins, mas eu diria que ele tende mais à direita política e posturas conspiracionistas do que à manosfera.

Qual é a linha geral de pensamento de quem lidera e acompanha a manosfera? De que tipo de conteúdo online estamos falando?  Tem de tudo. Desde conselhos de namoro — os chamados “pick-up artists”, que ensinam como chamar mulheres para sair —, até o virulento movimento red pill (pílula vermelha). Nessa ponta, a narrativa passa a ser menos sobre elas e muito mais sobre como os homens são vítimas. De acordo com essa filosofia deturpada, o sexo masculino é oprimido pelo feminino em um mundo estruturado de forma a beneficiá-las. A ideia que coaches ou influencers da masculinidade propagam para sua audiência é: tudo que não está como você gostaria na sua vida é culpa do feminismo. Essa é a retórica mais radical, e também a mais predominante. Em certo sentido, é parecido com uma seita, porque as principais figuras deslegitimam o que dizem e pensam as pessoas na vida desses homens (sua família, amigos), afirmando que eles escolheram a pílula azul, não a vermelha — na alusão ao filme Matrix, de 1999 —, e não conhecem a verdade.

O senhor argumenta que esse movimento, antes isolado nas franjas da sociedade, está se tornando cada vez mais popular. Como esses influencers operam para ter tanto alcance?  A manosfera é um funil de vendas. Um grande negócio onde “empreendedores da masculinidade”, que se proliferam de forma acelerada, capturam uma audiência de homens ao fazê-los se sentirem inseguros. Segundo a maioria dos coaches, desde a revolução sexual, a maioria das mulheres não se interessa pelo sexo oposto, usando a regra do 80/20 como argumento — 80% delas se sentem atraídas apenas por 20% dos homens. Se você não fizer nada a respeito, dizem eles, vai acabar no enorme rol dos indesejados. Para achar um par, seria preciso se tornar o que eles chamam de um “macho alfa de alto status”. O enorme alcance se deve a essa “pornografia do medo”, a estratégia de provocar pânico para que a audiência enxergue esses influencers como salvadores e se interesse pelos seus produtos, como cursos e livros. E os lucros são altos. Michael Sartain, com quem convivi por um tempo, cobra US$ 10 mil pela participação no seu programa Men of Action.

O senhor atuou como uma espécie de “instrutor” nesse curso do Sartain. Como lidou com as complexidades éticas de se engajar ativamente em um sistema que, em seu livro, descreve como manipulador e cheio de “canalhas e charlatões”?   Junto com outros voluntários, eu levava os participantes pagantes para sair à noite, acompanhando-os em boates e bares mais ou menos quatro vezes por semana. Muitos deles — que vieram de várias partes do mundo para o programa — nunca sequer tinham ido a uma balada antes.Fiz isso para poder circular com maior liberdade dentro do programa, estar presente e ver o que Sartain dizia nos seminários. Isso me deu muita ansiedade na época, e me incomodava quando os participantes começavam a me tratar como um amigo. Mas não diria que fui cúmplice. Não sinto ter contribuído para o dano que programas como esse causam, porque fiquei muito na periferia de tudo. Mas foi algo difícil e esquisito. Me dava a sensação de viver com duas personalidades diferentes. Vai te desgastando. Claro, isso é comum em trabalhos de infiltração.

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Que tipo de preparativos precisou fazer para se infiltrar nesse mundo?  Tive que desenvolver uma espécie de personagem, especialmente durante o tempo que passei com gurus em Las Vegas. Comecei a me vestir mais como eles, com jeans rasgados, camisas espalhafatosas, coisas que jamais usaria na minha idade. Era a forma mais simples de me encaixar, queria me tornar mais discreto e inconspícuo. Também dediquei um período longo, antes e depois da pandemia de covid-19, a conviver com figuras da manosfera para que confiassem em mim. Comecei a sair às vezes com eles ao menos uma vez por semana, para a balada ou algo do gênero. Mas eu não adotei, por exemplo, a linguagem que eles usam sobre mulheres. Não escondi que era escritor; eles sabiam, só não tinha ideia de qual seria o formato do livro. Eles não ligavam, porque acham que o que fazem é normal e, na verdade, pessoas como eu é que somos os esquisitos.

Qual foi a descoberta mais surpreendente que fez durante sua investigação?  Já esperava encontrar misoginia, o que seria ruim o suficiente, mas fiquei chocado com a retórica militar e insurrecionista que encontrei. Em 2022, fui a uma conferência na Flórida chamada Make Men Great Again, em referência ao slogan Make America Great Again, de Donald Trump. Um sujeito que usava o pseudônimo Ivan Throne fez um discurso belicoso convocando o público a uma guerra civil. Depois descobri que outra pessoa que já havia sido convidada para falar numa edição anterior dessa mesma conferência cometeu um massacre em Denver, no Colorado, em 2021. O que me abalou foi ver de forma muito clara como o red pill pode levar à violência política, o discurso virando ação. Não imaginava ser possível, mas terminei a investigação com a consciência de que este é um movimento ainda mais extremo do que eu esperava.

Imerso em tudo isso, chegou a se sentir tentado ou atraído por algum dos ensinamentos dos gurus?  Se fosse mais novo, talvez isso tivesse acontecido, mas hoje sou mais cético. Tudo me pareceu simplesmente tolo. Para essas pessoas — Andrew Tate, por exemplo — a vida inteira é vista através da lente de enriquecer. Tudo gira em torno de dinheiro, materialismo e de impressionar outros homens. Grande parte do conteúdo é sobre ostentar riqueza, mostrar o quanto se trabalha, quantas namoradas se tem. É um apelo muito adolescente, direcionado a jovens do sexo masculino. Aos 40 anos, para mim, aquilo parecia constrangedor, quase cômico: uma versão caricata da masculinidade, em que é preciso postar uma foto no Instagram com uma Lamborghini alugada para parecer “de alto status”.

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No livro, o senhor relembra sua própria experiência no início dos seus vinte e poucos anos, quando recorreu aos chamados “pick-up artists”. Qual é a diferença entre essa subcultura e a manosfera como a conhecemos hoje?  Quando ainda era um universitário, em 2006, participei de um programa que prometia me ensinar a usar cantadas eficazes em bares de Londres para conquistar mulheres. Tive uma infância mais isolada em uma área rural, e não tinha muito jeito com elas. Em retrospecto, sinto vergonha, mas ter passado por isso me ajudou na investigação e decidi escrever sobre isso como o primeiro capítulo do livro. Agora, diria que a diferença mais marcante é que pick-up artists, para além das frases prontas, estão preocupados em se tornarem aquilo que acreditam que as mulheres desejam. Trata-se de encarnar o estereótipo do “sedutor ideal”. Já a manosfera que encontrei anos mais tarde tem outro foco: impressionar outros homens, com muita ostentação. Mesmo quando alguns deles estão em relacionamentos, não parecem interessados em mulheres; é uma questão de aparência — escolher o tipo de parceira que impressione os amigos.

Existe alguma forma segura de se engajar com esse tipo de conteúdo?  Não. Talvez a única seja fazer como eu: entrar nesse mundo como um pesquisador, já com muito ceticismo, com uma postura crítica. Assim, é possível desenvolver uma espécie de anticorpo. Muitas pessoas acabam se “imunizando” quando se decepcionam, percebem que foram enganadas, ou que as promessas dos cursos simplesmente não se cumprem. Mas, às vezes, pode ser tarde demais. Parte do público não percebe que os conteúdos são gradualmente radicalizantes. Julia Ebner, uma acadêmica que consultei, comparou esse processo à metáfora da “rã sendo cozida lentamente”: se a água aquece de repente, a rã pula; se esquenta devagar, ela continua lá. O resto você já sabe.

O senhor atribui sua saída do mundo dos “pick-up artists” à “maturidade e à passagem do tempo”. Isso basta hoje? Como conter a manosfera?  Conforme envelheci, acabei ficando mais confortável comigo mesmo. As prioridades mudaram, percebi que não era necessário vestir essa fantasia de masculinidade. Mas acho a minha situação diferente. Eu não diria que fiquei realmente imerso na manosfera na juventude; foi antes das redes sociais, dos algoritmos. Era muito fácil simplesmente se afastar, sem ser bombardeado o tempo todo com conteúdos do tipo. Também por isso, os meios para combater a manosfera hoje não são complicados, mas o processo é difícil. Humor e sátira podem ser boas ferramentas para criticar figuras desse movimento, às vezes mais eficaz do que simplesmente denunciar ou argumentar contra elas. E pode parecer clichê, mas, em última análise, o maior antídoto é a leitura e o conhecimento. Grande parte do que é propagado pelos influencerscoaches é pura invenção: as estatísticas são falsas, basta dar um Google para perceber isso. Menos tempo no celular e mais no mundo real, provavelmente, também ajudaria.

O senhor argumenta que a “hipocrisia progressista” pode tornar os homens mais receptivos aos influenciadores da manosfera. O que você quer dizer com essa hipocrisia e o que a “esquerda mainstream” pode fazer para enfrentá-la sem abandonar valores sociais importantes?  Durante a década de 2010, pelo menos no Reino Unido e nos Estados Unidos, nasceu uma hiperpolítica de identidade, muito popular, em que a política passou a girar bastante em torno do politicamente correto. Não que isso seja algo ruim, mas chegou a um ponto que travou a produtividade da discussão. E também surgiram aquelas camisetas com mensagens como “o futuro é feminino” e a ideia de que, se você é um homem, é privilegiado e ponto. Os argumentos, de novo, são válidos, mas em alguns casos, a retórica se tornou bastante inflamada, com pessoas no X, o antigo Twitter, dizendo coisas como “mate todos os homens”, de um lado, e “mate todas as feministas”, do outro. O tipo de perfil que o ecossistema das redes sociais recompensa geralmente é aquele ativista narcisista, mais interessado em slogans e em provocar homens brancos do que em promover mudanças reais para todos. Ou seja, a política de justiça social acabou se tornando mais sobre aparência do que ação concreta. Isso afastou algumas pessoas da esquerda, e gerou um abismo ainda maior de polarização, em especial no caso de homens pobres, da classe trabalhadora, que não sentiram ter ganhado na loteria por nascerem com o cromossomo Y.

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