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Altíssima tensão e cenário imprevisível: o clima às vésperas do julgamento de Bolsonaro

Jair Bolsonaro está inelegível, cumpre prisão domiciliar por obstrução de Justiça e corre sério risco de ser condenado à cadeia por tentativa de golpe. Acusado de cometer cinco crimes, sua pena pode chegar a quarenta anos de prisão em julgamento que será iniciado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) no próximo dia 2 de setembro. Diante da iminência da derrocada, o ex-presidente resolveu pedir ajuda a seu ídolo Donald Trump para tentar se livrar das garras da Justiça e recuperar os direitos políticos. Desconsiderando relações diplomáticas bicentenárias entre Brasil e Estados Unidos, o governante americano — a fim de socorrer o capitão, entre outros objetivos — anunciou um tarifaço às exportações brasileiras e aplicou a Lei Magnitsky ao ministro Alexandre de Moraes, relator do caso do golpe no STF. Essa ofensiva prejudicou a economia nacional, acirrou os ânimos no Congresso e interditou o debate de projetos prioritários. Ou seja: atrapalhou o Brasil. Mesmo assim, Bolsonaro resolveu dobrar a aposta, deixando o país sitiado pelos interesses políticos de sua família e a truculência de Trump.

ACUADO - O ex-presidente: ele aposta que a pressão cria condições para anistia
ACUADO - O ex-presidente: ele aposta que a pressão cria condições para anistiaCristiano Mariz/Agência O Globo/.

O prejuízo financeiro, político e institucional do Brasil ainda não pode ser calculado porque dependerá de eventuais novas investidas do presidente americano. Alguns dados, no entanto, são reveladores. Na terça-feira 19, bancos brasileiros perderam 41 bilhões de reais em valor de mercado depois que o ministro do STF Flávio Dino decidiu que ordens executivas e judiciais dadas por um governo estrangeiro não têm validade imediata no Brasil. Na sequência, Alexandre de Moraes reforçou o coro e afirmou em entrevista à agência Reuters que “os tribunais brasileiros podem punir instituições financeiras nacionais que bloquearem ou confiscarem ativos domésticos em resposta a ordens norte-americanas”. A dupla de magistrados agiu para blindar os integrantes da Corte e mandar a Trump e Bolsonaro o recado de que não se dobrarão à pressão deles. A resposta teve como inspiração o próprio Moraes, incluído no mês passado na Lei Magnitsky, que prevê a asfixia financeira de seu alvo.

INVESTIGADOS - Eduardo e o pastor Malafaia: “Não vou me calar”
INVESTIGADOS – Eduardo e o pastor Malafaia: “Não vou me calar”Bruno Santos/Folhapress/.

A temperatura, que já estava elevada, subiu mais alguns graus na quarta-feira 20, quando a Polícia Federal indiciou Bolsonaro e o filho Eduardo pelos crimes de coação e tentativa de abolição do estado democrático de direito, além de realizar buscas e apreender o celular e o passaporte do pastor Silas Malafaia. Ele é o principal articulador de manifestações em favor do ex-presidente e um dos maiores críticos das decisões de Moraes no STF. Agora, está proibido de falar com os demais investigados. “Não vou me calar, vai ter que me prender para me calar”, protestou o líder religioso, abordado pelos agentes quando desembarcava em aeroporto do Rio de Janeiro.

No celular que a PF havia apreendido de Bolsonaro, foram encontradas mensagens que, segundo a investigação, mostram uma ação coordenada entre os envolvidos para intimidar o Supremo e até a existência de um plano de fuga: o esboço de um pedido de asilo político ao presidente da Argentina, Javier Milei, no qual o capitão se diz “perseguido por motivos e por delitos essencialmente políticos”. Descobriu-se também que Bolsonaro transferiu 2 milhões de reais para a conta da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro antes de um depoimento à PF — o que seria um ardil para ele tentar se safar de prováveis medidas de restrição patrimonial que viriam a ser impostas pelo STF.

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ADVERTÊNCIA - Gabriel Escobar, representante da Casa Branca: “Nenhum tribunal estrangeiro pode invalidar as sanções impostas pelos Estados Unidos”
ADVERTÊNCIA - Gabriel Escobar, representante da Casa Branca: “Nenhum tribunal estrangeiro pode invalidar as sanções impostas pelos Estados Unidos”Georgi Licovski/EPA/EFE

O relatório da polícia que descreve a atuação do ex-presidente e do filho junto ao governo americano anexou também mensagens que mostram brigas internas por poder, intrigas e futricas entre aliados e desentendimentos sobre a estratégia ideal para pressionar a Casa Branca a agir contra Alexandre de Moraes. Em um diálogo com o pai, por exemplo, Eduardo ataca o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, a quem considera pouco afeito aos planos de livrar o ex-presidente do Judiciário, e admite que o objetivo número 1 das negociações por uma anistia no Congresso não é beneficiar os condenados pelo fatídico 8 de Janeiro, como alardeiam bolsonaristas, mas blindar diretamente o ex-­presidente. A certa altura, há uma troca de xingamentos entre os dois. Eduardo imputa ao pai estratégias erradas que poderiam melindrar a Casa Branca na cruzada contra a Justiça, por causa de uma entrevista que ele havia concedido, na qual mencionava a existência de negociações para mitigar os efeitos do tarifaço. Eduardo não gostou da iniciativa, eles discutiram, mas a divergência foi contornada e as sanções contra Moraes acabaram anunciadas logo na sequência, arrefecendo os ânimos de um lado e acirrando do outro, dando início ao embate sobre o alcance ainda incerto da Lei Magnitsky em relação aos demais ministros do Supremo.

Com a decisão de Flávio Dino sobre as empresas brasileiras, as instituições financeiras passaram a lidar com duas ameaças simultâneas: a da Lei Magnitsky, de um lado, e a do Supremo, do outro. Ficaram, portanto, numa situação de insegurança jurídica e sério risco de perda patrimonial. As ações do Banco do Brasil — que também atua em território americano e é usado pelo Supremo para pagar o salário de Mo­raes — tiveram queda de mais de 6% na terça-feira, ou de 7 bilhões de reais em valor de mercado. O impacto econômico foi seguido de escalada no confronto institucional. Ecoando o secretário de Estado, Marco Rubio, o representante americano em Brasília, Gabriel Escobar, postou, em uma rede social, que “nenhum tribunal estrangeiro pode anular as sanções impostas pelos Estados Unidos ou proteger alguém das severas consequências de descumpri-las”. Além disso, declarou que “Alexandre de Moraes é tóxico para todas as empresas legítimas e indivíduos que buscam acesso aos Estados Unidos e seus mercados”. O despacho de Dino tampouco foi bem digerido entre outros ministros do Supremo, para quem o colega colocou as instituições financeiras em uma sinuca de bico num momento em que havia cautela sobre como lidar com a Lei Magnitsky.

NO ATAQUE - Donald Trump: presidente americano não descarta a possibilidade de novas punições ao Brasil
NO ATAQUE - Donald Trump: presidente americano não descarta a possibilidade de novas punições ao BrasilBrendan Smialowski/AFP
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Uma outra ação judicial já pedia diretamente que a legislação não tivesse validade no Brasil, mas, por estratégia, o relator do caso, ministro Cristiano Zanin, havia decidido postergar seu julgamento para esperar a poeira baixar. A prudência de Zanin foi atropelada pelo voluntarismo de Dino. “A ideia de que é possível isolar completamente um país de medidas jurídicas de outro não funciona porque hoje há integração econômica e tecnológica entre as nações”, diz o professor de direito internacional da Universidade de Brasília (UnB) Vladimir Aras. “Os bancos estão em uma encruzilhada de escolher entre estar no bico da águia americana ou nas garras da onça brasileira”, completa. Apesar do impasse, há um resquício de luz no fim do túnel. O próprio Moraes disse que novas informações encaminhadas a Trump poderiam derrubar as sanções contra ele e, por consequência, potenciais penalidades a empresas e bancos. O ministro também admitiu a hipótese de sua inclusão na Lei Magnitsky ser contestada por via judicial nos Estados Unidos, o que, mesmo se for feito, não provoca efeitos a tão curto prazo. O mercado financeiro, obvia­men­te, corre contra o tempo e quer sair ileso do confronto entre as partes — se necessário, buscando inspiração em experiências internacionais.

IMPASSE - Bancos: desobedecer ao STF ou desrespeitar a Lei Magnitsky?
IMPASSE - Bancos: desobedecer ao STF ou desrespeitar a Lei Magnitsky?Fernando Bizerra/Agência Senado

Um julgamento da União Europeia em 2021 considerou que uma empresa alvo de sanção por relações com o Irã poderia cumprir as penalidades americanas em território europeu. Em outro caso, funcionários do Tribunal Penal Internacional bateram às portas da Justiça dos Estados Unidos para garantir que não seriam punidos por trabalhar com uma autoridade que — no afã de Donald Trump de proteger o aliado israelense Benjamin Netanyahu — acabara de ser penalizada pela Magnitsky. No caso dos bancos brasileiros, alguns caminhos jurídicos estão sendo analisados. Segundo especialistas ouvidos por VEJA, o Banco do Brasil poderia recorrer ao Judiciário alegando que, pelo princípio da ponderação econômica, terá de se desvincular de Alexandre de Moraes como correntista e cumprir as determinações da Lei Magnitsky em troca de sua sobrevivência como instituição no exterior. Caberia à presidência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) validar a ordem estrangeira para aplicação em território nacional, o que estancaria a sangria do setor bancário e potencialmente inibiria novas represálias da administração Trump.

Seja qual for o caminho, ele será tortuoso para os bancos. Não é estranho, portanto, o silêncio das instituições. Itaú e Bradesco não comentam o assunto, assim como a federação do setor, a Febraban. O Banco do Brasil se limita a dizer que atua em conformidade à legislação brasileira, às normas dos mais de vinte países onde está presente e aos padrões internacionais que regem o sistema financeiro. “É um baita imbróglio jurídico, e os bancos não sabem para onde correr”, diz Thiago Amaral, professor de direito da faculdade Insper, de São Paulo. Na seara política, a confusão tem proporções semelhantes. A Lei Magnitsky é a principal aposta de Bolsonaro para tentar escapar da condenação por golpe e recuperar o direito de disputar as eleições em 2026. No roteiro do ex-­presidente, o mecanismo voltará a ser usado, de acordo com a necessidade, para constranger cada autoridade dos Três Poderes que dificulte sua redenção. Os mais ameaçados, por enquanto, são os ministros do Supremo.

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arte Magnitsky

A disputa no Judiciário é considerada pelo clã Bolsonaro uma maratona, que não se encerrará com o julgamento do golpe em setembro. Há toda sorte de recursos a serem apresentados ao STF, além do embate esperado, em 2026, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde Bolsonaro pretende registrar sua candidatura. O capitão tem esperança de que até lá a ofensiva de Trump tenha vergado as instituições brasileiras. Caso a inelegibilidade não seja revertida, aliados mais delirantes do ex-presidente afirmam que o governo dos Estados Unidos pode não reconhecer o resultado da próxima eleição presidencial brasileira, exatamente como fez no caso da Venezuela. “Se a gente quer voltar à normalidade, a eleição tem de ter a participação do presidente Bolsonaro, até para, num segundo momento, não resultar no não reconhecimento do resultado da votação. Eu não torço para isso (contestação americana). Estou apenas fazendo uma análise de cenário”, afirmou o senador Flávio Bolsonaro. Enquanto a pendência judicial se desenrola, setores da direita mais ligados ao ex-presidente ensaiaram o retorno da campanha em favor da anistia. O tema voltou ao debate depois do motim realizado na Câmara.

POPULARIDADE - Lula: petista ainda colhe dividendos da crise, mas essa situação pode durar pouco tempo
POPULARIDADE - Lula: petista ainda colhe dividendos da crise, mas essa situação pode durar pouco tempoRicardo Stuckert/PR

Como o projeto enfrenta resistência da população, da cúpula do Congresso e do Supremo, bolsonaristas fizeram uma oferta ao Centrão, que dita o rumo das votações. Numa transação de interesses bem particulares, os soldados do capitão, que sempre bradaram contra a corrupção, propuseram votar medidas favoráveis à blindagem de deputados e senadores investigados por crimes como desvio de verba em troca de ajuda para aprovar uma anistia ampla, geral e irrestrita. Para tirar o acerto do papel, os negociadores contam com a onipresente Lei Magnitsky. O senador Flávio Bolsonaro conversou com os presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), sobre os efeitos da legislação em cada pessoa que se torna alvo dela. Eduardo Bolsonaro já havia aventado a possibilidade de Motta e Alcolumbre serem alcançados pela norma. Em relatos a terceiros, Flávio ressaltou que teve o cuidado para não parecer que estava ameaçando o deputado e o senador, mas apenas esclarecendo o que estava em jogo. Se dependesse do ex-presidente, seus filhos e aliados, o Brasil deveria ser interditado até que todos os investigados por golpe fossem anistiados.

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Boa parte da população já percebeu isso e os sinais de rejeição ao estado permanente de confusão são cada vez mais evidentes (leia a reportagem na pág. 22). Segundo pesquisa Genial/Quaest divulgada na quarta-feira 20, 69% dos entrevistados afirmam que Eduardo Bolsonaro está defendendo os interesses dele e da família dele, enquanto apenas 23% dizem que ele age pelo bem do Brasil (veja o quadro). O arranhão de imagem da trupe bolsonarista é reforçado por outro indicador. Numa lista de oito autoridades, Jair e Eduardo aparecem com as piores avaliações de desempenho no imbróglio provocado pelo tarifaço. Quem se sai melhor é o presidente Lula. O petista continua a recuperar popularidade com a crise. O saldo negativo entre desaprovação e aprovação, que era de 10 pontos percentuais, caiu pela metade, para 5, entre julho e agosto. No exercício da função, no entanto, ele tem escolhas importantes a fazer.

VENEZUELA - Nicolás Maduro: eleição não reconhecida por Washington
VENEZUELA - Nicolás Maduro: eleição não reconhecida por WashingtonFederico Parra/AFP

Por conveniência eleitoral, o presidente pode continuar apostando as fichas na defesa da soberania nacional e manter como prioridade o duelo retórico com a dupla Trump e Bolsonaro. Ele continuaria numa zona que, por enquanto, pode ser considerada de conforto. Isso, porém, é muito pouco diante dos desafios do país. Desde o anúncio do tarifaço, o governo deixou de lado o debate sobre o ajuste fiscal e o alegado empenho pela aprovação da PEC da Segurança. Lula preferiu adotar uma retórica de palanque que, se pode fortalecer uma eventual candidatura à reeleição, também contribui para deixar o país paralisado. A pergunta se impõe: não há mais nada a fazer ou ser dito sobre saúde, educação, contas públicas e criminalidade? Se nada mudar, o Brasil pode ficar preso nesse beco aparentemente sem saída por um longo tempo.

Publicado em VEJA de 22 de agosto de 2025, edição nº 2958

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